Padre Patrício Correia Peixoto
Tendais, 1723 – Cinfães, 1799
Paróco de Cinfães, mentor da reedificação da igreja matriz de Cinfães
Lemos recentemente no blogue de um conterrâneo cinfanense que a igreja matriz de Cinfães tinha sido obra de Nicolau Nasoni. O autor do blogue não sabia onde tinha obtido tal informação, mas é seguro que a tenha colhido numa obra monográfica local, destas que continuamente vão deseducando a nossa juventude, com incorrectas informações históricas e uma prosa inócua que em nada contribui nem para o conhecimento, nem para a educação, muito menos para a salvaguarda do património cultural.
Alguns destes monógrafos, cheios de lirismo, disseminaram a ideia que a ponte de Covelas, sobre o rio Bestança, era do período românico, quando a mesma ponte está perfeitamente datada de 1762, sendo portanto, um belíssimo revivalismo do período barroco que em nada deslustra a importância da construção. Infelizmente basta percorrer a internet para perceber que o erro se repetiu até à náusea e provavelmente se repetirá ad aeternum, graças às afirmações categóricas de um ou outro mal preparado “estoriador”.
Ora se o erro da improvável datação da ponte de Covelas é um dos do tipo palmatória, considerar a igreja de Cinfães como da autoria de Nasoni, – o famoso projectista da torre dos Clérigos, no Porto -, pode ser mais difícil de desmontar para quem não for Historiador da Arte. Sem documentos, apenas com base em conjecturas derivadas da comparação de um outro pormenor, facilmente se atribuem autorias. O facto é que a igreja de Cinfães, bonito exemplar de um barroco regionalista, que se destaca entre as suas congéneres pela graciosidade do enquadramento decorativo do vão principal, foi concluída já Nasoni vivia o seu “canto de cisne”. Os historiadores da obra daquele grande pintor italiano nunca incluíram, nem como trabalho documentado, nem como obra atribuída, a igreja de Cinfães no rol dos vários trabalhos executados por Nasoni, em Portugal.
Contudo não podemos deixar de frisar a importância arquitectónica deste edifício. Como todos os templos católicos, ele dominou a paisagem local e definiu os eixos de urbanização que a vila de Cinfães conhece hoje. Isto desde o 3.ª quartel do século XVIII, quando foi concluído. Porém, muito antes deste edifício ser construído existia no mesmo local uma igreja mais pequena, que o Padre Heitor Cardoso, em 1758, descreveu nos seguintes termos:
«tem a dita Igreja coatro Altares a saber o Altar Mor, a donde esta, o Sacrario; e outro de Nosa Senhora do Rosario com a sua Imagem e outro de S. Joam Baptista com a sua Imagem e outro de Sancta Catherina com a sua Imagem e a Igreya nam tem mais que huma só Naue».
Talvez fosse este templo o edifício medieval onde o morgado Vasco Esteves de Matos instituiu, em 1388, a cabeça do seu vínculo, numa capela adossada à nave que, transformando-se, chegou até aos nossos dias. E é muito provável que seja dessa igreja o tímpano agora exposto no exterior, que o padre Alfredo Pimenta conjecturava (erroneamente quanto a nós) ser do período visigótico. Sem dados arqueológicos e documentais, não há razão para excluir a hipótese de ter sido aqui a sede da terra de São Salvador, cujo orago, testemunho da Reconquista, foi depois substituído pelo de São João, o Baptista, pacificado o território – agora em busca de bênção para a fertilidade da terra. Voltaremos, um dia, a este tímpano e ao seu percurso histórico. Para já interessa saber quem foi o mentor do projecto da actual igreja de Cinfães e conhecer um pouco mais sobre a sua construção e valor artístico.
O Padre Patrício Correia Peixoto nasceu lugar do Cabo, termo da aldeia de Quinhão, da paróquia de Santa Cristina de Tendais, nos primeiros dias do ano de 1723. Foram seus pais Bernardo Correia Peixoto, do mesmo lugar de Quinhão e Maria Rodrigues, de Mourelos. Por via paterna descendia o pequeno Patrício do Doutor Mateus Peixoto de Sá, que fora Ouvidor da Casa de Bragança e, segundo alguns autores, secretário de Estado do rei Filipe II. Como veio parar tão ilustre família a Tendais?
Esta pequena mas rica paróquia e concelho, juntamente com o vizinha município de Ferreiros, formavam, desde o século XVI, um enclave duriense no vasto património da Casa de Bragança (que se repartia essencialmente pelo Minho e Alentejo), quando aquela era ainda um Estado sereníssimo, dentro do Reino de Portugal. Cabia aos Duques a nomeação (chamado direito de Padroado) dos Abades de Tendais. Ora a escolha recaía, segundo lógicas clientelares, em serviçais ou parentes da mesma casa. Como o referido Doutor Mateus Peixoto, natural de Vila Viçosa do Alentejo, onde os duques tinham o seu palácio, havia um filho clérigo, conseguiu, do alto da sua posição de desembargador, que este fosse apresentado na Igreja de Tendais para onde veio, por volta de 1637.
Chamava-se o novo abade Francisco Peixoto de Sá* e, como todos os párocos, trouxe consigo, para além de um pequeno séquito de serviçais, a sua irmã, Maria Peixota ou Maria Peixoto de Sá para auxiliar na manutenção da residência paroquial e na gestão do passal. Numa terra onde os bons casamentos da nobreza eram resgatados entre os seus pares – endogamia difícil de ultrapassar -, a presença de D. Maria não passou despercebida à ilustre família dos Correias, de Vila de Mures que, desde o século XVI, vinha ganhando notoriedade e importância a nível regional. Do casamento de um membro dessa família, Luís Correia (nascido em Vila de Mures em data que desconhecemos, mas fal. em Lisboa em 1693), com D. Maria Peixoto de Sá, nasceu Brásia Rodrigues Peixoto de Sá que foi avó paterna do nosso abade de Cinfães, Patrício Correia Peixoto. Nascido numa família fidalga, sendo o segundo filho varão (o primeiro foi José Correia Peixoto, capitão-mor de Tendais), foi encaminhado para uma carreira eclesiástica, numa estratégia muito comum para a época, e que perdurou até bastante tarde. Sabemos infelizmente muito pouco dessa carreira. A sua ordenação deve ter ocorrido por volta de 1750, dado que em 1758 era já abade encomendado de Castro Daire, facto de extraordinária importância se pensarmos que esta abadia era uma das mais cobiçadas da Diocese de Lamego, dado o avultado rendimento da côngrua: 3000 cruzados. Mas a sua posição no xadrez social e familiar da região permitia-lhe uma protecção especial dentro do bispado, de tal forma que, uma vez vago o lugar na reitoria de Cinfães, próximo à sua terra natal, o Padre Patrício Peixoto foi apresentado no lugar deixado pelo falecido padre Heitor Pereira Cardoso.
Cinfães era então uma igreja também apetecida, embora trabalhosa, no seio das paróquias lamecenses. Rendia a côngrua cerca de 200.000 réis e passara, pouco antes da transferência do Padre Patrício, de vigararia (cujo padroado era da apresentação alternativa da Mitra e do Papa), para uma rentável reitoria. Nobre, possuidor da cultura que lograra receber através da família e da sua formação eclesiástica, o Padre Patrício veio imprimir um novo ritmo na pobre paróquia de que se tornou novo pastor.
O grande marco foi, sem dúvida, a reedificação da igreja matriz, símbolo de união dos vários lugares de que se compunha a populosa freguesia (1840 habitantes, em 1758). Patrício Correia viera da rica abadia de Castro Daire, onde se impunha a presença notável de uma igreja com dimensões pouco comuns para a época e para a região. Tinha, pois, a noção da importância da arquitectura e da arte e quis manifestar o seu gosto no novo edifício. Teve o apoio de alguém que pode ter sido o seu protector, dado o trajecto do jovem pároco: o Bispo D. Manuel de Vasconcelos Pereira. Descendente de famílias nobres de Cinfães, Castro Daire e Lamego o novo antístite tinha interesse em favorecer não só os seus familiares – costume nepotista a que a Igreja nunca conseguiu fugir – mas também os locais associados ao seu sangue, como era o caso da Igreja de Cinfães. De facto, o Bispo D. Manuel bem podia nutrir especial cuidado pela igreja matriz de Cinfães onde repousavam os corpos dos antepassados da sua cunhada e provável parente, Doroteia Joaquina de Melo Malheiro. A inscrição que assinala a trasladação dos corpos que ainda hoje se pode ler, esclarece sobre a construção do novo templo:
«Ad perpetuam rei memoriam. A antiga capela de St.º António instituída no ano de 1388 por Vasco Esteves de Matos, fidalgo da Casa Real e senhor da quinta de Veludo, hoje por hereditária sucessão pertencente à nobre e antiquíssima casa do Enxertado, por consentimento dos ilustríssimos senhores dela, o Sr. João Ferreira Ribeiro de Lemos, fidalgo da Casa Real, cavaleiro da Ordem de Cristo, e desembargador juiz da Coroa na Corte, e a Exma. Sr.ª D. Doroteia Joaquina de Melo e Malheiro, legitima descendente daquele instituidor, e por determinação do Exmº e Revm.º sr. D. Manuel de Vasconcelos Pereira, bispo de Lamego, foi demolida, porque embaraçava a fábrica desta nova matriz, e dela por ordem do mesmo prelado se trasladaram dois vetustíssimos mausoléus para esta capela, onde debaixo de 2 arcos, que se vêem, forma colocado com as armas da família em um deles, ficando os ditos senhores unicamente obrigados ao óbito de cinco missas anuais e ornato da capela. Tudo isto se executou no ano de 1785».
Não foi D. Manuel de Vasconcelos o mentor da obra – que se deve ao Padre Patrício – mas ele acalentou-a, com certeza, contribuindo, juntamente com a sua família para a fábrica da nova igreja. Esta foi terminada por volta de 1776, pois nesse ano já nela se celebram os ofícios. Mas como o ritmo da construção dependia de vários factores, o mais importante a fluidez do dinheiro para os vários pagamentos (dinheiro que deveria ser assegurado por vários responsáveis, pois se a capela mor era responsabilidade do padroeiro, a nave do povo e as capelas particulares dos seus administradores), ainda em 1785 o templo andava em obras como se infere da supra citada inscrição.
Foi mestre de obra um tal Manuel Borges (cf. Sinos d’Aldeia, 1975 apud COSTA, VIII, 1992, p. 592), mencionado na década de 1770 e não Nicolau Nasoni, como queriam os estoriadores locais. Apesar de pouco conhecido, o mestre Manuel Borges dirigiu a construção de um edifício que em nada envergonhava as melhores igrejas da Diocese, legando a Cinfães, um templo de dimensões avultadas e linhas arquitectónicas exemplares, capaz de acolher o sempre elevado número de fiéis que teve até ao século XX.
E o Padre Patrício Peixoto que mobilizou os esforços para que tal se concretizasse, deve ter morrido satisfeito com o legado que deixou, sendo sepultado, em 1799, sob as lages daquela que se tornou a sua morada definitiva.
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Nuno Resende, Historiador
Nasceu na vila de Cinfães em 1978