De origem toponímica (existe a povoação da Semblana no Alentejo), profissional (de semblar, ofício do ensamblador) ou mesmo corruptela de Sempliciano, como afirma Felgueiras Gaio o apelido Semblano parece ser estranho à região de Oliveira do Douro até ao século XVII. Porém, através do enlace de António Barbedo Pereira com Maria de Amaral, ocorrido a
25 de Agosto de 1690, inicia-se uma profícua descendência de Semblanos a sul do Douro.
A epopeia desta família, marcada por uma ascensão social vertiginosa, é um exemplo que pode não ser extravagante à sociedade hierarquizada do Antigo Regime, mas certamente não constituiria a norma para um percurso ascensional dificultado pela organização em linhagens e na pureza de sangue, espartilho convencional que a Igreja e o Estado acalentavam.
A referida Maria do Amaral, baptizada a 1 de Fevereiro de 1663, na freguesia de São Tiago de Burgães era filha natural de Catarina Antónia a fradesca e esta, como certa mão averbou ao lado do registo, disse ser o pai da sua filha e de fama publica «o padre g.lo da madre de Deos religioso da ordem de St.º eloy e natural da Sidade do Porto m.or com seus pais na ferraria de sima» [1]. Não conhecemos a legitimação da dita Maria e devemos, portanto, confiar na denúncia da sua mãe, que desta forma vinculou os seus descendentes à figura do eminente orador Gonçalo da Madre de Deus Semblano, frade lóio da cidade do Porto.
É certo que o apelido Semblano não era, no frade, uma alcunha e provinha, portanto, dos seus ascendentes, pois era já conhecido na cidade do Porto nos séculos XVI e XVII. Não nos interessa, porém, completar a genealogia ascendente do religioso que os dotes da palavra colocaram entre os principais do reino, à época [2]. Interessa-nos, sim, compreender como foi a Maria do Amaral, nascida no lugar de Enfermaria de Burgães, parar a Oliveira do Douro, hoje do concelho de Cinfães e então paróquia do termo de Ferreiros de Tendais [3]. Mais. Como pôde uma filha ilegítima, a quem o destino empurraria para seguir os solitários passos da mãe, casar com um filho do alferes Manuel Cardoso Coelho e neto do capitão-mor de Cinfães, João Cardoso?
Os locais por onde se moviam estes indivíduos – Porto, Souto do Rio, Boassas – podem sugerir-nos alguma ligação à faina fluvial, mas particularmente esclarecedor dessa probabilidade é o texto com que o genealogista Felgueiras Gaio
apresenta estes Amarais Semblanos, incluindo-os no § 11 de
MOUTAS do seu Nobiliário:
[…] António do Amaral Semblano cavaleiro da Ordem de Cristo Cap.am Mor do Concelho de Ferreiros de Tendaes que nos seus princípios foi sardinheiro como seu pai no Lugar da Pala do dito conc., e depois foi para o concelho de Sinfaes onde foi rendeiro, e Escrivão e por fim cavaleiro. da Ordem de Cristo, e Cap.am Mor como acima digo, e s.m. e prima D. Eugénia f. de Constantino Pereira que foi Moço de um arrais do Douro de Porto Manso, chamado Manal, e depois carvoeiro, e arrais do dito Rio e por fim mercador e morreu de uma facada, e s.m. Natália Pinto era f. de António da Cunha por alcunha o pixa negra do lugar do Lodeiro que foi enforcado em Estátua no Porto. António do Amaral Semblano acima era f. de António Pereira de Barbedo que foi sardinheiro no Lugar da Pala, e s.m. Maria do Amaral esta f. de Fr. Sempliciano frade Bento de quem dizem se deduz o apelido de Semblano, e sua amiga Maria do Amaral mulher solteira da freguesia de S. Tirso f. dizem de um carniceiro de S. Tirso tudo consta de uns embargos com que veio o Coronel Serpa onde se disputaram qualidades, e hoje se
acha aliançado com estes […] [4].
O texto é, a todos os níveis, um documento extraordinário sobre as movimentações geográficas e sociais de um conjunto de indivíduos de extrato popular, ligados a profissões mecânicas – à partida inibidoras de ascensão social. Lembramos que a legislação da época impedia aqueles que não vivessem à lei da nobreza ou que realizassem trabalho braçal de alcançarem cargos públicos. Contudo, esta deficiência (o termo é o da época) podia ser contornada através do casamento. Cremos que terá sido o caso dos filhos e netos de António Barbedo Pereira e de Constantino Pereira, que o genealogista diz terem sido, o primeiro, sardinheiro e o segundo, moço de arrais, carvoeiro e mercador.
É para já ignota a origem destes Barbedo Pereira [5]. Pelo lado do pai, o alferes Manuel Cardoso Coelho, beneficiavam de alguma nobreza, sendo a ascendência deste natural de Cinfães e do Porto (cidade de onde era natural o seu avô materno, Sebastião Coelho). Urbe ligada ao comércio, profundamente dependente do rio Douro, por onde escoava produtos, é natural (como de resto sabemos) que uma certa elite burguesa se dedicasse a actividades comerciais. Talvez fosse o caso destes Coelhos, casados em Cinfães em Souto do Rio, cais que fervilhava de actividade.
Quer António, quer Constantino casaram com mulheres de estatuto igual ou semelhante. António contraiu matrimónio com a já referida Maria Amaral e o seu irmão com Natália da Cunha, filha de um proprietário local, António da Cunha, morador no Lodeiro (arredores de Boassas) e que em algum ponto da sua vida teve problemas com a justiça, tendo acabado por ser enforcado em estátua (provavelmente após a sua morte) na cidade do Porto. Desconhecemos as razões para tal punição, mas António, alcunhado o Pixa Negra, que descendia por via ilegítima dos morgados de Boassas, amealhou a fortuna necessária para bem casar as suas quatro e únicas filhas [6].
E é no dinheiro e na fortuna que devemos buscar a explicação para a ascensão social dos Semblanos. O relato colhido por Felgueiras Gaio nos autos de justiça, destrinça a vagarosa caminhada dos Pereiras Barbedo e dos Amarais Semblanos até a uma cómoda posição financeira com que pudessem corroborar o estatuto correspondente ao desafogado viver. Os casamentos dos filhos de António Barbedo Pereira e de Constantino ainda não são o reflexo da sua posição entre as elites de Cinfães e Ferreiros de Tendais, mas os seus netos encontram-se confortavelmente integrados nas elites regionais. Interessa-nos seguir, sobretudo, a descendência do primeiro, que deu origem aos vários ramos de Semblanos conhecidos nesta região.
António e Maria do Amaral tiveram oito filhos nascidos entre 1688 e os primeiros anos do século XVIII. O primogénito, António do Amaral Semblano casou com a sua prima direita, Eugénia Pinto da Cunha, nascida no Lodeiro em Setembro de 1713 e os restantes com indivíduos pouco conhecidos da sociedade local, provenientes de povoações menores no mercado matrimonial regional: Medados, Ruivais e Boassas. Um manuscrito genealógico do Arquivo Diocesano de Lamego esclarece-nos sobre a personalidade e alguns aspectos da vida de António do Amaral. Segundo José Costa, um dos autores do texto no manuscrito, foi o executor da levada de Rebolfo,
«para o que foi nesseçario vencer gravissimas dificuldades; comprou muitas terras, fez dispença para se casar, que foi nesseçario ir a Roma, por onde andou um anno completo e, finalmente, fesse Cappitao-Mor deste extinto concelho de Ferreiros de Tendaes».
Escrito muitos anos após a vida do capitão António do Amaral (após 1855, data de extinção do concelho de Ferreiros de Tendais) o autor traça a imagem de homem empreendedor e tenaz o que, de resto, condiz com a vida dos seus antecessores, nomeadamente a do pai. É aliás expressiva a expressão fesse Capitão-Mor, sinal de que se empenhou no sucesso da sua posição social.
As compras e o facto de poder deslocar-se pessoalmente a Roma para requerer dispensa de consanguinidade indicam que era homem de consideráveis cabedais [8].
Do seu matrimónio resultou a extensa prole de 12 filhos, seis rapazes e seis raparigas. Dois dos filhos seguiram a carreira eclesiástica, tornando-se monges. Foram, sobretudo, as mulheres a moeda de troca com que os Amarais Semblanos cimentaram a sua posição social. Casando uma das filhas, Plácida Eugénia, com o morgado de Mourilhe André Carneiro de Castro Pinto, e outra, Ana do Amaral, com um sargento-mor das Ordenanças do termo do Porto, José Carlos de França Benevides e, ainda, uma terceira, Florência Germana, com o capitão-mor de Ferreiros, José Carneiro Tavares de Vasconcelos. Com estes enlaces o patriarca António do Amaral consolidou a posição no seio das governanças que agora podia controlar e por onde os seus descendentes poderiam facilmente ascender.
O herdeiro da casa, o filho mais velho (sem contar com os celibatários), José do Amaral Semblano Pinto da Cunha, casou com Joana Teodora da Costa Pinto, filha espúria do abade de Lazarim, Silvestre Costa. Foi também larga a sucessão entre ambos, contabilizada em dez filhos conhecidos. Uma parte substancial deles seguiu a vida religiosa, outra forma de ratificar a nobreza e a limpeza de sangue. Das filhas, três foram freiras em Arouca: Ana Luciana, Violante Ludovina e Joana Lúcia. Um dos rapazes, António Semblano, foi frade bernardo. Outro, chamado Isidoro, foi conhecido magistrado, corregedor do Rossio, em Lisboa e juiz de fora em Oliveira de Azeméis.
Mas, foi Luís do Amaral Semblano, capitão-mor de Ferreiros, aquele que mais proveito tirou do sacramento do matrimónio. Tendo casado com Ana Rita de Serpa Pinto, filha de José Carlos Serpa Pinto da Costa e de D. Maria do Carmo da Fonseca Mota, passou a integrar a poderosa e influente família dos Serpes e Pintos, não obstante a contenda que decorrera entre ambas as famílias, como especificamente narra Felgueiras Gaio ao referir a genealogia dos Amarais Semblanos:
tudo consta de uns embargos com que veio o Coronel Serpa onde se
disputaram qualidades, e hoje se acha aliançado com estes [9].
Unidos os apelidos Semblano aos de Serpa Pinto, não se consumaram as desavenças. Os Serpas Pinto eram liberais e tinham na figura do coronel António de Serpa Pinto, a figura máxima. Os Semblanos seguiram o caminho oposto, de absolutistas ou legitimistas.
Luís do Amaral pagou com a vida o ódio aos liberais. Assassinado em 1847, em Tarouquela, quando se dirigia à sua casa de Nespereira legou aos descendentes a fidelidade a D. Miguel e à Coroa. Particularmente expressiva é a descrição que das suas actividades fez Camilo Castelo Branco, através do relato que lhe confiou o escritor Pinho Leal. Durante uma efémera tentativa de restituição do trono a D. Miguel Pinho Leal conheceu alguns dos Semblanos. Parte do enredo passou- se em Boassas, durante a patuleia e merece transcrição:
«Em Sinfães soubemos da derrota do Sá da Bandeira em Valpassos […]. § Macdonell mandou acelerar a marcha, e fomos dormir a Boaças, sobre a margem esquerda do Douro. Já ali achamos em armas ao sul do rio o capitão-mór Luis do Amaral Semblano com uma forte guerrilha, e um tal Lôbo com uns 40 homens da Gralheira e doutras aldeias vizinhas da serra de Montemuro. […] § Estavamos em Boaças, no dia 18 de novembro de 46 [1846]» [10].
Neste romance-crónica, Camilo refere-se ao abade de Boassas, irmão de Luís do Amaral Semblano, que sonhava com o lugar de capelão d’el-Rei depois da vitória absolutista [11]. Deve tratar-se de frei António, o bernardo que, extintas as ordens religiosas masculinas em 1834, passou ao estado de secular.
Dos cinco filhos de Luís do Amaral e de Ana Rita dois rapazes seguiram a vida eclesiástica. Dos restantes houve descendência em cujas linhas e sangue perdurou o fervor político. De Miguelistas passaram a monárquicos, ideal que defenderam no pós-1910, particularmente no período da Monarquia do Norte que tanto impacto teve no município de Cinfães, onde moravam fervorosos realistas.
Foi a casa da Granja, em Nespereira, o seu solar nesta freguesia, depois do ramo se ter separado com o casamento de Luis e Ana Serpa Pinto. Antes disso, a casa-mãe dos Semblanos situava-se no sítio da Eira de Boassas. O manuscrito que já citámos, do século XIX, trata António Pereira Barbedo como morgado da Eira. Embora não disponhamos de documentação que assinale a instituição de qualquer vínculo com este título, os Amarais Semblanos passaram a exibir nas suas casas sinais exteriores do estatuto que tinham alcançado. Não se lhes conhece pedido de carta de armas, nem o uso de pedra, porém mandaram edificar uma capela onde António Barbedo Pereira se mandou sepultar em 1735. Ligaram-se, por casamentos, às casas do Lodeiro, da Calçada e do Rebolfo, onde são ainda visíveis as características de casa nobre: isolada ou periférica, de volumetria destacada no urbanismo, escadarias e patins, etc.
Os Semblanos foram conflituosos. Não, porém, mais do que outra família nobre ou nobilitante do Antigo Regime, enredadas em processos e demandas na tentativa de manter privilégios ou adquiri-los, numa época em que a justiça era estratégia de ataque. Mas, alguns dos seus membros mostraram-se especialmente contenciosos. Fora as questões políticas que lhes trouxeram dissabores até ao século XX, alguns dos seus elementos pleitearam pela posse de bens, como no caso da residência de Cárquere, ou ainda pelo prestígio de um título. Surge aqui destacar a vacância do morgado de Boassas, que atrás referimos.
Tendo morrido o último administrador deste vínculo, Fernando Campelo, no Porto em 1795, surgiram vários pretendentes ao lugar. A escritura de instituição deste morgadio, redigida no Porto em 1580, estipulava que se deviam preferir os homens às mulheres e que o administrador deveria sempre usar
o apelido Campelo a seguir ao nome próprio. Requereram ante as justiças António Campelo da Cunha, Dionísio António Osório Pinto e … Umbelina Semblano, filha de António do Amaral Semblano e Eugénia Pinto e Cunha! [12]
Eram os três descendentes do primeiro morgado, mas os dois últimos por via ilegítima. Nenhum deles usava o apelido Campelo e Umbelina, dentre todos, sofria o estigma de ser mulher num mundo de homens. Não obstante, certamente aconselhada pelos ávidos parentes, nomeadamente os irmãos letrados, prosseguiu na demanda que foi favorável, como não podia deixar de ser, a António Campelo.
Apesar de não usarem o apelido Semblano, o casamento de António Barbedo Pereira originou uma prole prolífica, ainda hoje representada por famílias Pias (os Barbedos), Botelhos e Almeidas de Boassas. E claro, em Nespereira, por uma extensa descendência que não tem deixado morrer o nome.
NOTAS
[1] ADP [Arquivo Distrital do Porto], paroquiais, Burgães, baptismos, l.º , p. 102.
[2] Deixou publicados alguns sermões. Sobre ele diz o padre Agostinho Rebelo da Costa: excelente músico e grande orador, COSTA, Agostinho Rebelo, padre; SILVA, Francisco Ribeiro da, pref.- Descrição Topográfica e Histórica da Cidade do Porto. 3.ª edição. Lisboa: Frenesi, 2001. ISBN
972-8351-53-4., p. 244. Faleceu a 20-10-1701.
[3] O casal viveu em Burgães até, pelo menos, o ano de 1692 Aqui nasceram os dois primeiros filhos, António do Amaral Semblano e Manuel Barbedo Pereira. A 12-12-1697 nascia Mariana, em Boassas, a primeira filha do casal. Seguiram-se mais cinco irmãos, cf. REZENDE, José Cabral Pinto de; REZENDE, Miguel Pinto de- Famílias Nobres nos concelhos de Cinfães, Ferreiros e Tendais nos sécs. XVI, XVII e XVIII. Porto: [Carvalhos de Basto], 1988. P. 38-39.
[4] GAIO, Felgueiras Manuel José da Costa- Nobiliário de famílias de Portugal [Braga]: Agostinho de Azevedo Meirelles/Domingos de Araújo Affonso, 1938-1941. § MOUTAS 11.
[5] Alguns investigadores sugerem uma ligação de Manuel Cardoso Coelho aos morgados de Veludo, pois a ocorrência do apelido Barbedo surge num indivíduo a ela ligado em meados do século XVI. Mas, para já, são apenas conjecturas.
[6] Mariana Pinto, casou a 10-1-1689 com Manuel Botelho de Carvalho, de Revogato; Luísa da Cunha, com o morgado das Fontaínhas, Manuel Dias de Figueiredo; Isabel Pinto com Bernardo do Amaral Botelho da casa do Vale de Boassas e Natália com Constantino Pereira Barbedo.
[7] ADL [Arquivo Diocesano de Lamego], documentos avulsos, Antonio Pereira de Barbedo da Eira, s.d, 1 fólio.
[8] J. C. Pinto de Rezende acrescenta a este perfil uma relação que contribuiu para a sua ascensão: o ter sido feito Cavaleiro da Ordem de Cristo com
12000 reis de tença pelos serviços prestados por seu Tio, João Parabel, de origem francesa, e Capitão auxiliar no posto de Ajudante de Cavalaria, rendeiro e Escrivão no concelho de Cinfães, cf. REZENDE & REZENDE-. P. 39
Desconhecemos a proveniência e a razão de estar um estrangeiro a servir
nas ordenanças de Cinfães. Seria tio por afinidade, casado com uma irmã do alferes Manuel Cardoso Coelho (apenas conhecemos Violante de Sousa, casada com Gaspar Nogueira)? Não cremos que se tratasse de um irmão do frade lóio, Gonçalo Semblano, ou menos ainda de Catarina Antónia… Por outro lado, não podemos deixar de ter em consideração o papel do exército na sua ascensão num tempo particularmente atreito a conflitos (Guerras da Restauração, em Portugal e, depois, as da Sucessão em Espanha).
[9] O genealogista devia referir-se a Alexandre Alberto da Serpa Pinto, coronel de milícias, herói das Invasões Francesas, fal. em 1839.
[10] CASTELO BRANCO, Camilo- Maria da Fonte. 3.ª edição. Porto: Livraria Chardron, [s.d.]. p. 116-117.
[11] Idem, Ibid, p. 111.
[12] Sobre este conflito ver RESENDE, Nuno- Vínculos quebrantáveis: o morgadio de Boassas e as suas relações (sécs. XVI-XVIII). Porto: Universidade do Porto, 2005.

Nuno Resende, Historiador
Nasceu na vila de Cinfães em 1978