No seguimento da revolução de 25 de Abril de 1974 lançaram- se pelo país várias campanhas de educação, ideologização e cultura. Sobretudo no interior português (onde a resistência à mudança era maior, o controlo da Igreja Católica mais incisivo e onde o analfabetismo e a iliteracia grassavam), o MFA – Movimento das Forças Armadas – investiu ferozmente no desenvolvimento de actividades mobilizadores da população, opondo-as ao que considerava como o avanço neo-fascista perpetrado pelos partidos da direita social-democrata, como o PSD e o CDS.
Numa destas campanhas, no Inverno de 1976, um dos activistas do MFA o escritor António Modesto Navarro passou pela Gralheira e deixou o registo de uma série de entrevistas a alguns dos habitantes locais. À parte o carácter político e ideológico das perguntas o relato dá-nos uma imagem algo diversa da Gralheira actual, não obstante certas características culturais e de isolamento geográfico que ainda marcam aquela comunidade.
O testemunho intitulado O Verão-Inverno da Gralheira reparte-se por 14 conjuntos de questões: Quase às portas de Montemuro, Romper o isolamento com o MFA, (Sobre)viver da agricultura, Morrer por culpa do fascismo, Um padre assim quanto tempo resiste?, Esta emigração interna, Quanto vale ter sala da comunidade?, A Defesa do Povo, Organização da Comunidade, A mulher tem de lutar por melhores condições de vida, Reagimos àquilo que nos for melhor, Explique-me isso dos telhados e A maioria votou à sorte.
Participaram no questionário o sr. José Pereira da Fonseca, o sr. Orlando Ribeiro Lopes e o sr. Manuel Francisco Ribeiro, sendo o primeiro presidente da junta de freguesia de então.
A grande questão local, em 1976 prendia-se com o isolamento geográfico da aldeia. A construção de uma estrada definitiva só fora então possível com a ajuda do MFA que dispusera de homens e máquinas para a abertura de um ramal a partir da E.N. 321, concluída em 1972. A obra custou para cima de 120 contos entre ajudas locais, dos emigrantes e do Governo Civil. A Câmara Municipal de Cinfães em nada ajudou. Porque é que a Câmara Municipal de Cinfães não ajuda? perguntou o interlocutor do MFA – Não sei. Diz que não tem dinheiro, respondeu o então presidente da junta.
Em 1976 havia cerca de 300 pessoas na Gralheira, entre as quais se contavam um sapateiro e um alfaiate, mas a grande parte eram agricultores e pastores. De facto o gado era até então a maior fonte de rendimento, pois a terra produzia apenas batata, centeio, milho e feijão. Não temos vinho, não temos azeite. Frutas não há de qualidade nenhuma. O nosso forte é os gados. Vacas. – assinalou o sr. José Pereira da Fonseca. O lucro estava na criação e na transacção, que compensava a falta de outros géneros. Apesar de vir ocasionalmente uma camioneta vender outros produtos à Gralheira, a distância e a falta de estradas dificultava o acesso de bens e pessoas como quando era necessário ir ao médico. Era mais perto ir a Castro Daire do que à sede de concelho, a Cinfães.
Um dos responsáveis pela abertura da estrada e pelo auxílio a quem precisava de deslocar-se, tinha sido o padre Ilídio, a quem a entrevista se refere em várias ocasiões (recordemos a desconfiança ideológica do MFA em relação à Igreja). O sacerdote era considerado figura estimada e descrito pelo narrador como pessoa combativa. Cabia-lhe paroquiar, para além da Gralheira, as freguesias de Panchorra e Alhões.
A aldeia tinha escola mista, com professora (natural de Magueija mas a viver na Gralheira), uma sala colectiva e uma organização informal que o MFA chamava de Comissão de Aldeia. Pelas respostas, este tipo de colectividade variava segundo as necessidades da população, ou seja, reunia-se para assuntos específicos. Ao contrário da ideia de colectivização que o MFA trazia na sua cartilha ideológica, a comunidade da Gralheira fazia uso da sua tradição comunitária para resolução de problemas pontuais: a água, a estrada ou o saneamento. A água corrente foi distribuída pela população segundo os m2: para cada 6 m2 é um minuto de água – servia para regar e abastecer algumas casas.
Este tipo de organização colectiva reflectia-se já no pastoreio. O gado miúdo da aldeia era reunido e diariamente era levado por um pastor diferente. Quanto às vacas cabia a cada proprietário levá-las para os campos.
A estrada veio ditar modificações não só a nível social, mas também no urbanismo, pois permitiu a possibilidade para importar novos materiais, nomeadamente a telha. Em 1976 a Gralheira era uma aldeia de casas colmadas tipologia de revestimento que os próprios naturais diziam ser, em alguns aspectos, mais confortável que a telha: aquece de inverno¸ a casa torna-se muito mais quente, fica agasalhada. E de verão mais fresca.
Curioso é o desejo do então presidente da Junta que, para além da estrada e do saneamento projectava a construção uma represa destinada a … um barco! Era para o no verão a rapaziada se divertir, acrescentou.
O projecto concretizou-se, o isolamento quebrou-se com novas estradas, já quase não há telhados de colmo e hoje a Gralheira parece ter-se tornado uma das mais activas comunidade da serra de Montemuro, de que já em 1976 se orgulhava de ser a princesa.
Não deixa de ser estranho, ou até irónico, que tudo isto aconteça quando a Gralheira, tão briosa do seu carácter colectivo, cessou a sua autonomia administrativa.
Nuno Resende
Sobre texto de Navarro, António Modesto- Vida ou morte no distrito de Viseu. Lisboa: Prelo, 1976, p. 273-297 (de onde foram citadas todas as passagens em itálico)
COMO CITAR ESTE ARTIGO:
RESENDE, Nuno – Dicionário biográfico de Cinfães: A Revolução chega à Gralheira. Porto: [edição do autor]. Pub. em
http://historiadecinfaes.blogspot.pt/2013/12/a-revolucao-chega- 3
gralheira-1976.html (2013). [Consult. 29-12-2013]. Disponível em
WWW: <http://historiadecinfaes.blogspot.pt/>.

Nuno Resende, Historiador
Nasceu na vila de Cinfães em 1978