A Gralheira (Cinfães) e José Leite de Vasconcelos.

Fotografias publicadas em ROCHA PEIXOTO – Obras, vol. I Estudos de etnografia e de arqueologia. Póvoa do Varzim: ed. da Câmara Municipal, 1967.[Org. pref. e notas de Flávio GONÇALVES].
Já aqui falámos de Augusto Brochado, cuja figura se destaca no conjunto dos representantes de Cinfães na sociedade portuguesa do século XIX. Embora desconhecido local e nacionalmente devido, em parte, à sua morte precoce, a curta vida e obra (1862-1885) de Augusto Brochado é representativa do clima político e ideológico que se gizava na Universidade de Coimbra durante a segunda metade do século XIX, de onde saíram nomes como Eça de Queirós, Antero de Quental, Teófilo Braga, entre outros.
Pelo menos dois dos irmãos de Augusto seguiram também os estudos em direito na Universidade de Coimbra, um de nome Cristóvão e outro chamado Acácio.
Cristóvão Pinto Brochado não se destacou na imprensa da época como seu irmão Augusto mas teve, indirectamente, um papel fundamental no estudo da História, Arqueologia e da Etnografia portuguesas que se desenvolviam, então, pela mão de José Leite de Vasconcelos (1858-1941). Da mesma forma que o irmão se correspondeu com aquele prolífico cientista também Cristóvão dirigiu várias missivas ao investigador que nelas logrou encontrar elementos aproveitados em livros e artigos que escreveu.
Naturalmente Cristóvão Pinto Brochado era um informante sobre as coisas da terra de onde era natural, Cinfães. Outrossim, tendo depois da sua formatura ocupado o lugar de secretário da Comissão Administrativa daquele concelho, podia com facilidade aceder a pessoas, lugares e informações sobre assuntos de história e tradição locais (1).
A sua vasta correspondência produzida na primeira vintena do século XX guarda-se entre o acervo documental do ilustre arqueólogo J. Leite de Vasconcelos, no Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa e das várias cartas ali guardadas uma (datada de 1-5-1903) chamou-nos a atenção pela riqueza do discurso que passamos a transcrever:
«Antes de encommendar os trajos que pretende para o Museu, tenho a diser-lhe que os serranos da Gralheira empregam na factura das roupas exteriores duas qualidades de panno – a saragoça e o burel. A saragoça é importada de fóra e o burel é manufacturado por elles da lã das ovelhas e por isso mais empregado do que a saragoça. Em vista d’esto peço-lhe me diga de qual dos pannos deseja que seja feita a roupa para homem. As camisas mais usadas, tanto para homem como para mulher, são de estopa.
Parece-me que para o trajo de homem ficar completo será indispensável uma camisa de estopa, feita na Gralheira. Em todo o caso não a mandarei fazer sem autorisação sua.
As calças de cú aberto (é este o nome por que são conhecidas) usadas na Gralheira e n’outros lugares pelas creanças, também me parecem typicas e dignas de figurar no Museu.
Já encommendei os sirguados que pretende.
Desde já lhe agradeço muitissimo o numero d’O Archeologo que fala de Sinfães. […] (2)
São insistentes os pedidos e sugestões de Cristóvão Brochado, em cartas anteriores e posteriores a esta, sobre uma ida à Gralheira. A 3 de Março de 1901 escreve «espero que não se esqueça do nosso passeio ás terras deste concelho e especialmente á Gralheira» e a 1 de Setembro de 1901 lembra o «projectado passeio à Gralheira». Não temos a certeza que Leite de Vasconcelos tenha efectuado o dito passeio, mas sabemos que explorador esteve em Cinfães em 1900 e talvez tenha estanciado na casa de Valbom, onde vivia Cristóvão e a sua família.
Certo é que a Gralheira despertava o interesse de homens da ciência desde finais do século XIX e continuou a despertá-lo até bastante tarde. Já aqui falámos dos estudos de António Pereira Ramalho, um médico ligado à primeira investigação pneumológica na serra de Montemuro (3) e em Rocha Peixoto que fez publicar num dos seus estudos etnográficos as imagens acima reproduzidas que de certa forma materializam em imagem o que Cristóvão descreveu na sua epístola.
O interesse pelos costumes, pelas tradições e até por um certo distanciamento civilizacional, em suma, pelo pitoresco, percorreram as ideias dos intelectuais de finais do século XIX que assim justificavam origens e sistematizavam a sociedade em lugares e estratos devidamente organizados. Os seus estudos foram fulcrais para se criar o folclorismo que o Estado Novo acalentou e que caracteriza, ainda hoje, parte do interesse local e supralocal sobre as coisas «típicas» das terras de Cinfães.
NOTAS:
(1) – Sobre Cristóvão Brochado escreve António Cardoso de Vasconcelos, nas suas Memórias de Sinfães (redigidas antes de 1907): «Solteiro tendo frequentado o curso de preparatorio de Lamego e Coimbra, onde muito illustrou o seu espirito, e secretario muito digno da administração de Cinfães». Sabemos que Cristóvão casou a 14 de Abril de 1912 com D. Maria Amália Semblano. Cf. Arquivo Diocesano de Lamego, Fundo Geral, Memórias de Cinfães mss. 314, S. Cristóvão de Nogueira, Cap. 2.º, N6 – Familia Lacerda de Valbom.
(2) Museu Nacional de Arqueologia, espólio de José Leite de Vasconcelos, [epistolografia], cartas de Cristóvão Pinto Brochado (1903).
(3) O estudo que referimos está disponível em-linha: https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/17248.

About the author

Nuno Resende, Historiador
Nasceu na vila de Cinfães em 1978

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