Bendita entre as serras

Boassas [2004] Fotografia de N.R. ®

 
«Serra bendita entre as serras» é uma expressão de Eça que Luís Forjaz Trigueiros (1915-2000) usou para cunhar o título da sua viagem duriense a Baião e Cinfães, em 1950. Sobre a região desenha uma paisagem literária, de rara acuidade.
Corre assim a descrição do autor:

«Passo, antes de Baião, o miradouro que indica Tormes, e lembra, com a própria legenda do escritor, as páginas que esta paisagem lhe sugeriu: “Serra bendita entre as serras…” Daí a pouco deixo a estrada marginal e desço sobre a esquerda. Encosto mais, para dar passagem às rogas que vão para a vindima; de onde a onde, acompanha-me o chiar dos carros de bois. Lá em baixo, à beira do rio, espero que na pequena estação de Mosteirô o tráfego ferroviário execute um lazeirento fazer e desmanchar de agulha, enquanto marcha-atrás, marcha-à-frente, dois mercadores, carregados de pipas, se cruzam num desvio e logo seguem.
Com seu poético nome Porto-Antigo é o limiar da margem esquerda para o termo da minha jornada. Agora, de novo subo a montanha, acompanhando as encostas a pique, entre socalcos de videiras mutiladas. No topo, onde o carro já não pode romper porque o percurso passa a fazer-se por caminhos mal abertos na serra, subo contrariado para a «cadeirinha» humana – ainda há disto, Santo Deus! – que, aos tombos, por sobre lajes puídas, mel leva à propriedade onde Carlota Serpa Pinto deu à literatura portuguesa algumas das páginas tão esquecidas quanto originais. Tormes fica do outro lado. Estou no imaginário Beirós das Cartas à Prima, que há trinta ou quarenta anos, se não me engano, abanaram a Lisboa confidencial de Pastelaria de então.
Tudo mudou lá para longe. Aqui, não. Imutáveis, apenas estas sombras onde vinha descansar, no verão, o explorador de África e onde me esperavam há pouco, os filhos da escritora. E, na verdade, que local privilegiado! Perto, Boassas; lá para cima, Ferreiros, onde se pode ir por estradas romanas. Em frente, Cinfães, discreta e alegre. À volta, de vale a vale, o canto das raparigas que andam na vindima: “A Amelia tecedeira / tem o tear e não tece / ou ela anda de amores / ou o tear lhe aborrece…“. Reportagem frustrada, na rapidez da visita, nem peço lições à paisagem que, máscula embora, se requebra no abandono do mulherio a cantar longe: “oh ramo, oh lindo ramo / oh ramo de oliveira / o meu ramo era o mais lindo / que andava na brincadeira…” Mas nem o eco responde…Como isto é diferente da vindima minhota em que tudo, trabalho ou canção, se passa perto e bom caminho! Aqui a música já nasce a contar com a distância e morre numa involuntária procura de infinito, nestas canções perdidas por entre longos vales quase a prumo. Eis a montanha doirada. Eça de Queiroz o disse, como só ele sabia: “…serra tão acolhedora, serra de fartura e de paz, serra bendita entre as serras…” (1950)»

Trigueiros, Luís Forjaz – Paisagens portuguesas. Uma viagem literária. Lisboa: Guimarães Editores, 1993. 972-665-380-0 [edição portuguesa, p. 65-66]
 

About the author

Nuno Resende, Historiador
Nasceu na vila de Cinfães em 1978

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Não faças copy-paste!