O município de Cinfães e a saúde dos seus habitantes no início do século XX

     
A vila de Cinfães no início do século XX e a sua feira de gado. Recorte digital de bilhete postal ilustrado, s/d, não circulado. Col. APIF| Nuno Resende
    SABIA QUE… no início do séc. XX a Câmara Municipal de Cinfães possuía nos seus quadros 2 médicos de partido, aos quais pagava anualmente na totalidade um ordenado que rondava os 800,000 reis? Estes médicos tinham como principais missões prestar serviços a pobres, crianças abandonadas e “desvalidas” (como se dizia então!) e a inspecção das meretrizes. O serviço que estes médicos prestavam era grátis, por isso mesmo ganhavam um ordenado pago pela Câmara. Podiam, em alguns casos, cobrar serviços para outros estratos populacionais de maiores posses. Quando um concelho contratava mais do um médico de partido, devia definir a respectiva área geográfica de intervenção. Assim, um destes médicos tinha sede na Vila e outro ocupava-se da zona do extinto julgado de Sanfins.
     Além de serviços médicos, a Câmara de Cinfães proporcionava também aos seus munícipes nesta época serviços farmacêuticos através do pagamento de um Partido Farmacêutico, com um ordenado à volta de 80,000 reis anuais. Não sabemos em que condições era prestado este serviço à população, se era grátis para os pobres e pago para todos os outros, por exemplo. Parece ter existido, de facto, uma especial preocupação com os mais desfavorecidos: por exemplo, na Conta de Receita e Despesa de 1901 a Câmara paga 13,329 reis de medicamentos para pobres e indigentes em débito de uma conta de 15,000.
     Quem eram estes profissionais? Veja no quadro abaixo os nomes dos médicos e dos farmacêuticos que exerceram no concelho de Cinfães na primeira década do século XX, verificando-se uma grande permanência dos mesmos profissionais:
Anos
Médicos
Farmacêuticos
1900
Dr. Abel Brandão Leite Pereira Cardoso Meneses / Dr. José do Nascimento da Rocha Azevedo Coutinho
César Augusto de Oliveira Correia
1901
Dr. Abel Brandão Leite Pereira Cardoso Meneses / Dr. José do Nascimento da Rocha Azevedo Coutinho
César Augusto de Oliveira Correia
1902
Dr. Abel Brandão Leite Pereira Cardoso Meneses / Dr. José do Nascimento da Rocha Azevedo Coutinho
César Augusto de Oliveira Correia
1903
Dr. Abel Brandão Leite Pereira Cardoso Meneses / Dr. José do Nascimento da Rocha Azevedo Coutinho
César Augusto de Oliveira Correia
1904
Dr. Abel Brandão Leite Pereira Cardoso Meneses / Dr. José do Nascimento da Rocha Azevedo Coutinho
César Augusto de Oliveira Correia
1905
Dr. Abel Brandão Leite Pereira Cardoso Meneses / Dr. José do Nascimento da Rocha Azevedo Coutinho. A partir de julho deste ano o médico Abel Brandão parece ter sido substituído pelo clínico  Manuel Soares Monteiro
César Augusto de Oliveira Correia
1906
Dr. Manuel Soares Monteiro / Dr. José do Nascimento da Rocha Azevedo Coutinho.
César Augusto de Oliveira Correia
1907
Dr. Manuel Soares Monteiro / Dr. José do Nascimento da Rocha Azevedo Coutinho.
César Augusto de Oliveira Correia
1908
Dr. Manuel Soares Monteiro / Dr. José do Nascimento da Rocha Azevedo Coutinho. Em dezembro o Dr. Manuel Soares Monteiro já tinha sido substituído pelo Dr. Abílio Monteiro Soares
César Augusto de Oliveira Correia
1909
Dr. Abílio Monteiro Soares / Dr. José do Nascimento da Rocha Azevedo Coutinho.
César Augusto de Oliveira Correia
     Mas, para além destes serviços que são significativos, uma outra preocupação é com as epidemias, longa luta que perpassa praticamente todo o século XIX, mas que se reforça nos últimos anos desse século e nos primeiros do seguinte. Para além das alargadas preocupações higienistas que caracterizam este período e que se traduzem, entre outros, no investimento urbano na secagem de pântanos, no fornecimento de água potável ou ainda no extermínio de cães portadores de raiva, as quais deixaremos de lado para outra oportunidade, a vacinação assume-se como uma das principais preocupações. Com efeito, em toda esta década é permanente a despesa em vacinação, particularmente a vacinação contra a varíola e a difteria. No entanto, a raiva parece ter sido também um problema relevante, o que leva a Câmara a realizar despesa no que designa “Serviços preventivos contra a hidrofobia”, outro nome possível para esta doença, durante os anos de 1903, 1904, 1905 e 1909.
     Esta pequena notícia evidencia claramente uma preocupação da Câmara de Cinfães neste final da Monarquia Constitucional em contribuir para a melhoria do estado de saúde dos seus munícipes, particularmente os mais desfavorecidos. No entanto, é preciso não esconder que esta preocupação não era exclusiva nem específica deste município, ela integra-se num contexto mais geral e nacional que se caracteriza na já referida aposta higienista como profilaxia das doenças epidemiológicas e mais genericamente na melhoria da qualidade de vida das populações, na emergência de serviços locais de saúde pública, através do subdelegado de saúde, e ainda da contribuição financeira municipal para iniciativas e/ou serviços de abrangência nacional: desde final do séc. XIX todos os municípios contribuam com uma determinada verba fixada por lei para o Hospital de S. José, o grande hospital central nacional, e a partir de 1899 para o Fundo de Beneficência Pública para a Luta contra a Tuberculose, uma iniciativa da Rainha Dona Amélia. Diga-se igualmente que nem sempre os municípios se integraram por iniciativa própria neste contexto e tendência; foi necessária, em muitos casos, uma musculada iniciativa legislativa do Estado Central para conseguir estender um conjunto de serviços mínimos de saúde ao nível local. O caso dos médicos de partido é paradigmático: desde o Código Administrativo de 1842 que o Estado Central motiva primeiro, e pressiona sucessivamente depois, através de diversa legislação, os municípios a manter, pelo menos, um médico de partido permanente; até que se vê na obrigatoriedade de definir, em 1901, uma medida radical, ao estabelecer que “fica sujeito à supressão o concelho que por falta de recursos não poder suportar a despesa de um partido” (artº 65 Dec. 24/11/1901 que estabelece o regulamento geral dos serviços de saúde pública e beneficência).
     O que parece distinguir a prática do município de Cinfães nesta época é a tendência para abranger todo o universo concelhio com alguns serviços, e não apenas para a zona urbana sede de concelho, a criação de serviços facultativos de iniciativa pública, lá onde a iniciativa privada não tinha capacidade ou interessa em chegar, como o caso dos serviço farmacêuticos e a regularidade da despesa neste âmbito, o que é um indicador claro que existe uma perspectiva que estes serviços fazem parte do portfólio dos serviços correntes a prestar pelas câmaras municipais às suas populações e não uma prática episódica motivada por qualquer urgência grave como uma epidemia.

Fontes:
Contas de Receita e Despesa e Processos de Contas da Câmara Municipal de Cinfães nos anos de 1900, 1901, 1902, 1903, 1904, 1905, 1906, 1907, 1908 e 1909.

Paulo Jorge Oliveira Leitão
Maio de 2017

About the author

Nuno Resende, Historiador
Nasceu na vila de Cinfães em 1978

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