A epigrafia em Cinfães

A epigrafia, ciência que estuda os testemunhos escritos criados pelo Homem sobre diversos materiais tem, em Cinfães, um fértil terreno de estudo. Das inscrições dos lintéis das portas de habitações, tão comuns em qualquer aldeia cinfanense, até à tumulária nas igrejas e fora delas, há um expressivo rasto de testemunhos escritos que documenta a intervenção humana neste território.

Tipos de epígrafes na área do concelho de Cinfães. De cima para baixo: túmulo na capela de Boassas, inscrição no medalhão barroco da ponte de Covelas (1762), inscrição no lintel da porta principal da capela de Santo António em Ferreiros de Tendais, inscrição em padieira de portal em Macieira de Fornelos. Fotos de Nuno Resende.

Alguns autores têm chamado a atenção para estes letreiros e datas, como o Dr. António Cardoso Pinto de Vasconcelos (1) que, no final do século XIX, nas suas memórias sobre Cinfães, chamou a atenção para certas inscrições exumadas no castro de Sampaio (São Cristóvão de Nogueiro). Mas já antes dele, ao longo do século XVIII e de oitocentos o crescente interesse pelas ruínas e antiqualhas levou a que eruditos como João Pedro Ribeiro, paleógrafo, José Leite de Vasconcelos e Martins Sarmento, arqueólogos, soubessem de Cinfães por algumas das suas epígrafes.

No século XX Armando de Mattos, um historiador e etnólogo, publicou na revista Douro Litoral (1946-1948), o resultado de uma recolha de inscrições que realizou nesta região, na qual se incluía Cinfães. Elencou, então, as inscrições de São Vicente da Granja, em Nespereira; as do túmulo de Diogo Leite Pereira Drago, em Ferreiros de Tendais e algumas das acima referidas inscrições do castelo ou castro de São Paio.

Reprodução do trabalho de registo e leitura da epígrafe da Granja de Nespereira por Armando de Matos (1946).

Na leitura que fez da inscrição da capela de São Vicente o Dr. Armando de Mattos escreveu tratar-se da alusão à construção de uma igreja de São Vicente por um abade de nome Afonso e à sua consagração por certo João Lourenço, evento ocorrido a 11 de Maio da era de 1409 (ano de 1371) (2).

Foi, contudo, um estudo mais recente, o de Mário Barroca (2000) que, não só propôs a correcção desta leitura, como evidenciou outras epígrafes notáveis do actual território do município de Cinfães (3).

Quanto à inscrição de São Vicente da Granja, Mário Barroca apontou e corrigiu a versão deficiente, quer na leitura, quer na interpretação da epígrafe feita por Armando de Mattos, propondo, logo à partida, a data de 1373 em vez de 1371 não atendo ao dia (por ilegível), mas apenas ao mês de Maio daquele ano. Outrossim a releitura da inscrição conclui, segundo o autor, que se trata da referência à «construção da Capela de S. Vicente da Granja […] em nome de Cristo, da Virgem Maria e de S. João», por um abade de nome Afonso.

Como o mesmo autor refere, trata-se de um importante apontamento, este o da «presença deste letreiro em latim, perdido na zona mais montanhosa da freguesia de Nespereira», que se «poderá compreender se tivermos em conta que ele terá sido encomendado (se não mesmo redigido) pelo Abade […] Afonso, a quem se ficou a dever a iniciativa da construção da Capela de S. Vicente da Granja» (4).

De facto, tendo em conta que, no tocante a igrejas são raras as inscrições deste teor desta época, a permanência da inscrição de Nespereira associada a este lugar e capela (ainda que o edificado actual corresponda a uma reconstrução setecentista, como assinalada pela data de 1726 inscrita no lintel), faz deste documento um importante registo da transformação do território a partir da edificação dos seus lugares de culto.

Data epigrafada no portal da capela da Granja de Nespereira: 1747 A [ano de 1747]. Fotografia de Nuno Resende

Mário Barroca inventariou, também, outros três lugares com importantes epígrafes medievais em Cinfães: a do Outeiro do Castelo, na foz do Paiva, onde uma data de Janeiro de 1180 assinala uma notável cheia daquele ano; a inscrição comemorativa da sagração da igreja de Tarouquela em 1214 e um letreiro na igreja do Escamarão datado de 1385.

Está por fazer, contudo, a recolha sistemática dos registos epigráficos em Cinfães, trabalho que ajudaria a compreender ciclos construtivos, a identificação de indivíduos proeminentes ou até esclarecer certos eventos sobre os quais outros documentos são omissos.

Notas:
(1) Vasconcelos, António Cardoso Pinto de; Resende, Nuno, sub-tit., introd. e notas – Os Dois Faladores: folhetim sobre a História de Cinfães (1898-1899). Porto: SantResende, Ld.a, 2019.

(2) Mattos, Armando de – Epigrafia do Douro Litoral: introdução. Douro-Litoral. (1946-1948)
(3) Mattos, Armando de – Epigrafia do Douro Litoral: introdução. Douro-Litoral. n.º 3 (1946). p. 25.

(4) Barroca, Mário – Epigrafia Medieval Portuguesa (862-1422). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000. 

About the author

Nuno Resende, Historiador
Nasceu na vila de Cinfães em 1978

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