COMUNICADO SOBRE O «OBSERVATÓRIO DA NATUREZA DE MARCELIM»

Vista de Marcelim. NR. 2012.

Fomos recentemente confrontados, no sítio em-linha do Município de Cinfães, com uma notícia intitulada «MAIS PERTO DO CÉU –OBSERVATÓRIO DA NATUREZA DE MARCELIM!» que anunciava a construção, naquela aldeia da freguesia de Tendais, de «um observatório superior, com vista sobre o vale do rio Bestança», «um observatório inferior, com vista sobre a foz do rio Bestança e o vale do rio Douro», «uma praça de receção; um anfiteatro e uma praça de festas, vocacionada para a realização de pequenos eventos, bem como uma zona de estadia e lazer», tudo orçamentado em 254.191,00 euros.
O valor do projeto, mas não só, o carácter inusitado do mesmo numa freguesia carenciada ao nível de infraestruturas básicas (saneamento, água canalizada) e serviços (correio, centro de saúde, etc.) levou-nos a dirigir três ofícios pedindo esclarecimentos, um ao Município, na pessoa do seu presidente sr. Armando Mourisco, outro à Junta de Freguesia de Tendais e outro à Comissão de Coordenação da Região Norte.
Como natural de Cinfães, investigador pela salvaguarda e promoção do seu património, cidadão interessado no desenvolvimento local e na boa gestão de fundos públicos (que, são, afinal de contas, resultado da aplicação dos nossos impostos), sentimos sempre a necessidade de questionar algumas das grandes linhas estratégicas definidas pela autarquia. Estas, como se sabe, dependem de um conjunto de factores nem sempre claros ao cidadão comum: vontades políticas, a maior parte das vezes de âmbito partidário (obra significa voto, propaganda, etc.), de estratégias económicas fundamentadas em mínguas aparentes (sem qualquer estudo de mercado e de viabilidade), ou percepções irrealistas e pouco democráticas sobre as necessidades prementes dos cidadãos. Há quem confunda democracia com voto e considere este uma procuração de plenos poderes passada pelos eleitores aos políticos para gestão ilimitada e sem freio dos bens públicos.
Há ainda, por vezes, cedências a especulações e lóbis económicos que resultam em prejuízo para os contribuintes, como se viu recentemente no processo de investigação às Lojas Interativas da Turismo do Porto e Norte.
Ora, a cidadania exerce-se para além do voto, na intervenção junto dos poderes, como bem especifica, aliás, a Constituição da República Portuguesa no primeiro ponto do seu artigo 268.º

«Os cidadãos têm o direito de ser informados pela Administração, sempre que o requeiram, sobre o andamento dos processos em que sejam directamente interessados, bem como o de conhecer as resoluções definitivas que sobre eles forem tomadas.»

É pena que poucos o façam e não amiudadas vezes como seria obrigação de um cidadão interessado, interventivo e consciente do cerceamento de liberdade que o mero voto (ou pior, a abstenção) lhe confere.
Com sentido de intervenção cívica que sempre demonstrámos e continuaremos a demonstrar, nomeadamente através da página História de Cinfães, dirigimos, portanto, à Câmara Municipal de Cinfães, as seguintes questões, por carta registada de 9-3-2020:
a)      Sendo a freguesia de Tendais e, nomeadamente a aldeia de Marcelim, particularmente carenciadas do ponto de vista de infraestruturas básicas, como saneamento, água canalizada, acompanhamento médico familiar, serviços sociais e públicos de proximidade – como se justifica o gasto de €254.191,00 num observatório ou, afinal, conjunto de mirantes?
b)      Que estudos de viabilidade existem – se é que existem – sobre a garantia de um retorno financeiro do investimento, com base na ideia da tal «dinâmica turística», isto é:
a.      O observatório (ou o conjunto de mirantes) irá estimular o aumento de visitantes? Se sim, em quanto porcento em relação ao número de visitantes actuais?
b.      Os mirantes ajudam a ver melhor o que antes se não via? Se sim, de que forma?
c)      Foram tidos em conta, neste projeto, aspectos de impacto paisagístico?
d)      Foram tidos em conta, neste projecto, aspectos estéticos – na escolha dos materiais e do seu posicionamento no terreno?
e)      Foram tidos, em conta, neste projecto, aspectos éticos e sociais, isto é, foi dada possibilidade aos moradores de Marcelim, e até aos habitantes de Tendais o serem ouvidos sobre esta obra e a sua opinião sobre a pertinência da mesma?
A resposta seguiu-se por ofício de 17-03-2020 com os seguintes pontos:

«- A obra em questão faz parte do plano plurianual do Município de Cinfães; . o Município desenvolveu o respetivo projeto obtendo para efeitos de licenciamento todos os perecer [sic] externos exigíveis;

«-De acordo com a lei 75/2013 compete às câmaras conceder apoios, desenvolver atividades e executar projetos e obras que considere relevantes para o desenvolvimento socioeconómico do concelho;

«-Considerou a Câmara, por unanimidade, que o projeto em causa é de relevância para o desenvolvimento económico e social do Concelho, nomeadamente, a nível turístico e valorização da natureza, em concreto da serra de Montemuro, tornando-o atrativo, gerando fluxo de pessoas e por conseguinte aumento da economia local;

«-Os investimentos desenvolvidos no Concelho são deliberados pela Câmara e Assembleia Municipal, nos seus planos de investimento e atividades plurianuais, como consequência da legitimação democrática dos eleitores cinfanenses.»

No mesmo dia, a 09-03-2020 dirigimos à Junta de Freguesia de Tendais as seguintes questões:

a)           Foi o executivo da Junta de Freguesia ouvido nesta matéria?

b)           Houve uma audição prévia ou explicação à população sobre este projecto? E se sim, houve consenso na aceitação do mesmo?

A resposta, assinada pelo seu presidente Sr. André Duarte, recebemo-la no dia 18-03-2020:

«1. A conceção e execução da obra é da responsabilidade do Município de Cinfães;

«2. A Junta de Freguesia foi consultada e, perante o interesse do investimento para a atração turística e valorização da freguesia e concelho e, consequentemente para o desenvolvimento económico e social, foi emitido parecer favorável;

«3. Desconhecemos se a população foi auscultada, mas sabemos que a Igreja e respetivo Conselho Económico o foi, disponibilizando o terreno para o efeito.»
Não tendo recebido, ainda, um comentário da Comissão de Coordenação da Região Norte, não podemos deixar de apontar, para já, que várias das nossas questões não foram atendidas, de uma forma clara e objetiva, nomeadamente
a)      Quanto à existência de estudos de viabilidade que demonstrem que tal obra gerará a atração e o desenvolvimento turístico. Para se saber se determinado investimento gera valor, e que supere o próprio valor investido, importa fazer estudos que demonstrem que antes da mesma havia um fluxo de x visitantes e que esse fluxo poderá aumentar depois da construção. Mais, que este projecto será gerador de emprego directo ou indirecto. Esse estudo parece não existir, pelas respostas enviadas, quer pela Câmara Municipal de Cinfães, quer pela Junta de Freguesia de Tendais.
b)      Nas respostas de ambas as instituições não se referem estudos sobre o impacto que tal obra terá na paisagem envolvente e no seu lugar de implantação.
c)      Finalmente, e o que me parece mais grave é que não tenha havido uma consulta pública prévia relativamente a este projecto, primeiro, naturalmente, aos habitantes de Marcelim, e depois aos de Tendais e em último caso aos cinfanenses. Apesar da resposta do Município se estribar «na legitimação democrática dos eleitores cinfanenses», procurando encerrar a questão com o seu poder aparentemente não escrutinável, cabe ao cidadão participar sempre que possível na discussão de todos os actos que interfiram com a sua vida e com a vidas das comunidades em que nasceu, habita ou pelas quais se interessa. De resto num mundo globalizado esse sentimento alastra a outros indivíduos, e bem, pois compartimos todos deste mesmo cosmos.
Posto isto, ainda que aguardemos o parecer de outros organismos contactados, parece-nos, para já, insuficiente a explicação e a justificação para tal projecto. Uma obra do valor orçamentado não pode ser apresentada com ligeireza, quando tanto falta ainda fazer para suprir as necessidades básicas dos habitantes locais.
Temos invocado, sobretudo, aspectos éticos, mas poderíamos invocar os estéticos: o lugar de Marcelim, para quem o conhece, é um mirante natural. A localização da aldeia num outeiro alcantilado sobre os vales da Bestança e do Douro é um dos pontos de observação mais notáveis do concelho e essa situação tem sido mal aproveitada ao nível de divulgação turística, monográfica, literária, etc. Parece, assim, ainda mais extemporânea a colocação de observatórios em aço, quais gigantes que, pela maquetização apresentada na notícia do município, parecem impor-se na paisagem mais do que a paisagem em si.
Nenhum cinfanense pode querer mal para a sua terra e para os seus. O «pátrio ninho», para utilizar a expressão de um ilustre conterrâneo escritor, é para todos os que nele nasceram o sítio para onde converge a nossa sempre eterna recordação. Mas para além dessa ideia de lugar arcádico, idílico, perfeito, temos que pensar no bem-estar de quem lá mora, estuda ou trabalha.
Nos tempos difíceis que se avizinham, motivados pela pandemia que nos atinge, são a estes que importa justificar todo e qualquer gasto que não seja directamente destinado à sua existência e sobrevivência.
Nuno Resende
Administrador do História de Cinfães

About the author

Nuno Resende, Historiador
Nasceu na vila de Cinfães em 1978

Comments

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Não faças copy-paste!