Boassas em 1918.

Imagem 1. Mulheres de Boassas em 1938. Fotograma do filme documentário e promocional do concurso «A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal». (c) Cinemateca Portuguesa.

Os registos paroquiais, de baptismo, casamento e óbito, são uma fonte histórica importante para a reconstituição das comunidades. Existem desde, pelo menos, o século XVI, na sequência da Reforma Católica que passou a registar, em livros específicos, todo os actos vitais de todos os seus fregueses, desde o nascimento até à morte e mesmo depois desta (os legados, as missas por alma, etc), o que incluía naturalmente o baptismo, o matrimónio e o óbito, mas também as confissões, sobretudo por altura da quaresma na chamada desobriga.

Nos registos paroquiais de Boassas de 1918, fomos encontrar um conjunto de dados muito curiosos sobre a história de vida dos indivíduos que lá moravam, como o seu nome e a sua profissão.

Em 1917, Boassas tinha 136 fogos (1), sendo um dos maiores povoados da freguesia de Oliveira do Douro e contabilizamos, no ano seguinte, através da desobriga de 1918 552 pessoas residentes e 24 ausentes, num total de 576. Esta contabilização faz-se apenas nos indivíduos capazes de confessarem e comungarem, a partir da primeira comunhão, ou seja, por volta dos 8 anos. Como tal, a média de idades que obtivemos cifrava-se, então, nos 34,9 anos. Se dividirmos o número total de indivíduos pelos fogos indicados em 1917 obtemos uma média de 4 indivíduos por fogo – excluídas as crianças entre os 0 e os 7 anos de idades – o que poderá aumentar a média obtida e indicar a existência de famílias numerosas a ocupar as habitações.

Havia 314 mulheres, todas elas moradoras e presentes em Boassas, em 1918; e 262 homens, 24 deles ausentes. Embora o nosso cômputo de fogos exceda os 136 de 1917 e se cifre nos 186 é provável que a contabilização do pároco de então, fosse realizada com outra lógica, que não a dos recenseadores de 1911 e 1917.

De qualquer forma, a maioria dos chefes de família e que encabeçavam os fogos, eram homens, 154, e apenas 46 mulheres (33 viúvas, 11 solteiras, 1 casada e 1 sobre a qual não sabemos o estado civil).

Para além destas informações encontram-se no rol da desobriga outras, nomeadamente quando à ocupação dos indivíduos, ou a sua profissão. Neste quadro lemos melhor essa distribuição:

Profissão/número de indivíduos
Trabalhador: 129
Negociante: 19
Proprietário: 16
Pedreiro: 4
Barbeiro: 4
Alfaiate: 3
Moleiro: 2
Marinheiro: 2
Costureira: 2
Cortador: 2
Vendeira: 2
Lavrador: 1
Latoeiro: 1
Doméstica: 1
Trolha: 1
Militar: 1
Carteiro: 1
TOTAL: 191

Da população total de Boassas, em 1918, correspondente a 576 indivíduos, 33,1 % (191) era população activa, quer pelo trabalho braçal, quer pelo seu estatuto de administradores dos seus bens. São referidos, ainda, 3 indigentes. É de realçar uma substancial fatia de negociantes (19) que viveria dos seus negócios, sobre os quais a fonte nada diz. Mas, para além do impressionante número de trabalhadores, equivalente a 22% da população activa e que deviam recorrer a expedientes vários para sobreviver (lavoura a jorna, caseiros, etc.), há um conjunto de ofícios que recorda a vida de uma povoação com origem medieval como o foi Boassas: os pedreiros e trolhas, os barbeiros, o moleiro, os alfaiates, o latoeiro, os cortadores (de carne?) e as vendeiras. Esta pequena franja da população está, contudo, muito distante da ideia de uma terra de latoeiros e pedreiros, que o folclorismo colará mais tarde a Boassas, por exemplo em 1938 no concurso a »Aldeia mais portuguesa de Portugal» (imagem 1) e, em 1960, na representação de odreiros que esta aldeia levou à Feira das Colheitas no Porto (ver imagem 2). Fazia parte da filosofia corporativista do regime dividir os indivíduos cada um pela sua função ao modo dos mesteres da Idade Média.

Imagem 2. Os «odreiros» de Boassas, no cortejo da Feira das Colheitas, no Porto, em 1960. (c) Centro Português de Fotografia.

Chamamos a atenção para os marinheiros. Apesar de um pouco distante do Douro, eram de Boassas alguns dos marinheiros que trabalhavam na árdua lide da faina fluvial que vai abrandando ao longo do século XIX e XX, mercê da chegada da ferrovia e das estradas.

Olhemos, agora, para a onomástica. A onomástica é o estudo dos nomes dos indivíduos, que nos pode dar informações pertinentes sobre modas e gostos, devoções, transformações sociais e até lançar luz sobre as relações individuais e de grupo nas comunidades.

Comecemos pelo nome próprio. O mais comum, nos homens, é o José (56) e nas mulheres o de Maria (84), embora neste género encontremos algumas especificidades, como o nome Carlota (16), que pode explicar-se pela presença na época de várias senhoras proprietárias assim chamadas.

Os últimos apelidos mais frequentes são Jesus (26), José (21), Pereira (15), Teixeira (14) e Silva (12). Mas o que chama mais a atenção são os apodos que compõem os nomes, geralmente a seguir ao último apelido. Os apodos são alcunhas, forma de designação que não advêm do registo do nome ao nascimento, mas de alguma característica ou características que o indivíduo ganhou ao longo da vida. Em Boassas são muitos e variados e transmitem-se geracionalmente, constituindo famílias ligadas por esses apodos. Registámos os seguintes:

Apodos de Boassas em 1918

Barbeita  

ChizLucasPrata

Bastarda/o

Cidade

Marante

Quinzedias

Beato

Cochicho

Marchante

Rosa

Bebra

Coradinho

Mouroa

Sargaço

Bicha

Delirio

Padeira

Sezinando

Biéla

Doutor

Passarinho

Tendais

BolasErvilheiro

Patuleia

Tendeira

Branco

Estelina

Perrico

Teresinho

Calhandro

Estrela

Pimpão

Trela

Cardia

Exposta/o

Poças

Carmezim

Gregório

Charrua

Se no caso de alguns dos apodos o significado e a a origem parece clara, por exemplo a toponímica (Barbeita, Cardia, Poças, Tendais, Trela), relativa a qualidades de nascença (bastarda/o e exposta/o, assim designadas as crianças fruto de ligações ilegítimas) ou características físicas (Passarinho e Coradinho) e até relacionadas com devoções como a de Nossa Senhora da Estrela, patrona de Boassas, outras poderão resultar do reconhecimento público de aspectos das personalidades dos seus titulares, como Beato, Bicha, Calhandro, Cochicho, Perrico, Pimpão, etc. E outros, ainda serão relativos a profissões como Marchante e Padeira.

Curioso é o apelido Patuleia, que nos remete para o tempo da reacção contra as políticas Cabralistas em 1846. Sabemos, pelo livro de Camilo Castelo Branco que em houve indivíduos desta margem do Douro que participaram nas milícias pró-miguelistas que apoiaram os sectores de oposição ao Governo cabralista. A designação Patuleia advinha da expressão «pata ao léu», ou seja, as camadas populares e pobres, descalças, que entraram neste movimento. É provável que de Boassas tivesse ido algum miliciano e que no regresso à sua terra o rebaptizassem.

Para finalizar importar salientar que a vasta maioria dos apelidos radica a sua origem em nomes próprios (António Conceição, José, Gregório, Lucas, Rosa, Ventura) sinal de que, em algum tempo um dos seus antepassados se destacou socialmente o bastante o legar, como apelido, aos descendentes.

NOTAS

  1. Portugal. Direcção Geral da Estatística – Censo da população de Portugal: Censo das povoações. Fogos. População de facto classificada por distritos, concelhos, freguesias e povoaçōes. Lisboa: Impr. Nacional, 1917, p. 356.

PARA SABER MAIS:

Nuno Resende

About the author

Professor. Universidade do Porto. Portugal.

Comments

  1. Muitos parabéns por mais um interessante artigo sobre Boassas, analisado aqui à luz dos registos documentais. Devo dizer, porém, que a actividade de latoeiro (que ainda persiste pela mão do Sr. Rui Teixeira) chegou a ser muito popular em Boassas. Quando era criança havia em aqui pelo menos quatro oficinas de latoaria, a produzir diariamente… e mais haveria em época anterior. Quanto aos pedreiros, a profusão era ainda maior, sendo que os seus trabalhos eram conhecidos em todo o país, como o dos irmãos “Gatos”, que fizeram, entre muitas outras obras assinaláveis, a bela ponte sobre o rio Cabrum. O seu trabalho era tão notável que chegava ao ponto de ser de qualidade escultórica, de grande beleza e perfeição, como atesta a notável imagem de Sta. Bárbara que se encontra sobre o portão da quinta com o mesmo nome, em Cinfães.

  2. Na minha freguesia de Fornelos havia muita gente que era tratada não pelo nome, mas por “pouca roupa” “águinha de cebola” “mailinda” “o rádio de casaldeita” “o bichinho de Cortegaça”, “a peixota” etc. etc.

    1. São de facto algo comuns os apodos nas nossas aldeias e um estudo dos mesmos revela-nos de uma forma mais clara a diversidade social! Obrigado pelo comentário!

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