Vista aérea sobre Santiago de Piães

SANTIAGO DE PIÃES: breve história.

SANTIAGO DE PIÃES é uma das 14 freguesias actuais do município de Cinfães, depois da reorganização administrativa de 2013. Manteve inalterados os seus limites herdados da velha paróquia medieval dedicada a São Tiago Maior, um dos Apóstolos de Cristo: uma longa e estreita faixa de território, entestada a Norte pelo rio Douro e a Nascente pelo ribeiro de Fontelo, pelos cumes dos braços da serra da Gia, do Castelo ou de Cristelo e a poente pelos altos de Chão de Lamas até à ribeira de Concela.

Sensivelmente ao centro desta faixa, situa-se a igreja matriz, implantada num pequeno outeiro. Em 1948 eram os seguintes lugares distribuídos pelo termo paroquial: Amial, Antemil, Aviterna, Barreiros, Bouça, Cabo de Vila, Cabrel, Casal, Casal Seco, Cerejal, Cimo de Vila, Concela, Crosconhe, Covais, Crasto, Cristelo, Feiral, Folhadal, Gateira, Laje, Lamas, Morões, Oleiros, Outeiro, Outeiro de Mouro, Paços de Sanfins, Passos, Pereiras, Preguncho, Quebrada, Queijada, Quelha, Quintã, Rebolho, Santa Comba, Santo António, São Martinho, São Pedro, Seixos, Soalheira, Souto, Souto Justo, Torneiros, Vale do Mendo, Ventozelas, Vilar de Arca e Vilarinho. Havia, então, mais 13 casais (pequenas unidades agrícolas) e 21 quintas. O recenseamento de 1940 dava-lhe uma população de 2802 pessoas e o mais recente, em 2011, 1797 habitantes (1).

Recorte da carta militar 1/25000 referente ao território/freguesia de Piães.

A abundância de povoações, concentradas, sobretudo a norte da freguesia, e os topónimos (nomes dos lugares), mostram-nos um intenso povoamento, com aproveitamento dos recursos naturais, através de culturas intensivas (Folhadal), arroteamento de zonas incultas (Feital, Laje, Lamas, Seixos, Soalheira) e aproveitamento do antigo revestimento arbóreo (Amial, Souto, Souto Justo). Representativos de um povoamento antigo, pré-romano, são os nomes Crasto e Cristelo. Mas é da Idade Média que nos chegam as referências mais significativas, sinal de um intenso investimento de poderes e indivíduos nesta região, desde logo através da cristianização dos sítios com invocações bem antigas e importantes, como Santa Comba e São Pedro.

Mesmo a escolha do orago São Tiago Maior, Apóstolo, indica a importância da igreja nos tempos pacificados a seguir à Reconquista cristã no vale do Douro (cerca do ano 1000). Nesses tempos em que o domínio muçulmano era empurrado para sul, os fundadores das novas igrejas escolhiam as invocações principais para as titular, primeiro as de Cristo e as da Virgem e depois as dos Apóstolos.

Em 1102 já se refere a Sancto Iacobi de Pelaiones e na contribuição pedida por D. Dinis para as Cruzadas a igreja de Peões oferta 175 libras, o que a colocava entre as 25 mais ricas da Diocese de Lamego (2). Esta importância, que certamente lhe advinha de um florescente demografia e, logo, de grande número de contribuições individuais e familiares, reflecte-se na criação de uma Colegiada – uma das poucas igrejas com este órgão em toda a Diocese! O que era uma Colegiada? Tratava-se de, como refere um comum dicionário, de «uma corporação de sacerdotes com funções de cónegos», à maneira do cabido das catedrais. Para obter este estatuto era necessário que a igreja alcançasse rendimentos suficientes que lhe permitisse sustentar um grupo de sacerdotes ao serviço do seu culto. Devemos assinalar que, antigamente, os sacerdotes laboravam dia e noite presidindo a missas quase ininterruptamente, a maior parte por alma e por aniversários de óbitos. É provável que o estatuto de Piães como igreja com colegiada se deva, não só à sua densidade populacional, como referimos, mas a outros factores, como à figura dos reitores e abades que por ela passaram e até ao nascimento e desenvolvimento de um importante culto regional, o de Nossa Senhora das Cales.

A origem deste culto estaria ligada ao tempo da Reconquista, com a descoberta de uma imagem escondida durante o tempo das lutas. No lugar fez-se uma ermida, cobiçada entre os fregueses de São Cristóvão de Nogueira (onde efectivamente o santuário se situa) e os de Piães – razões para muitos litígios e rivalidades ao longo de séculos. O lugar de reitor (reitor é um título hierárquico numa escala que poderia ir do mais importante, o de Abade, ao de simples Cura) de Piães foi cobiçado e ocupado por alguns padres com origens nobres, mas de entre todos, salienta-se o de Martim de Figueiredo, um dos mais importantes humanistas portugueses do início do século XVI. De facto, a Piães liga-se o nome de uma das figuras de proa do Renascimento português, «doutor em Direitos (Canónico e Civil), desembargador do Paço e senador de Portugal durante o reinado de D. Manuel I e ainda professor na Universidade de Lisboa».

Em 1758 já era abadia, e foi o abade Manuel Ferreira da Silva que, na resposta ao inquérito distribuído pelas freguesias do país naquele ano, nos dá uma imagem de conjunto muito completa e interessante de Piães (3). Dentre as respostas das freguesias vizinhas é uma das mais completas e descritiva. Começa por dizer que a freguesia está situada nos vales que entre si fazem o monte e castelo de Sanfins, «de tão alta eminência que de seus cumes se descobrem as águas do mar e os cais de Matosinhos»! Esta introdução poética leva a considerações mais objetivas: a sua freguesia estava situava no concelho de Sanfins, no bispado e na comarca de Lamego e no militar respondia a Almeida. A igreja encontrava-se ao tempo num sítio solitário, sendo colegiada real com três beneficiados, ou seja, os rendimentos da mesma eram repartidos por benefícios, dispostos pelo Rei a quem bem entendesse.

O Abade passa depois a enumerar as principais aldeias da freguesia, começando pela de Vilar de Arca «o primeiro povo do cimo da freguesia», numa interessante alusão às duas partes da mesma, uma alta e montanhosa (a sul) e uma baixa e ribeirinha (a norte). Enumera os moradores de cada uma e refere as capelas que as serviam, as aldeias que as tinham. Sobre o facto de pertencer ao concelho de Sanfins, dá-nos informações valiosas. O concelho de Sanfins da Beira (para distinguir de Sanfins do Douro, povoação hoje do concelho de Alijó) formou-se na Idade Média com os termos das freguesias do Escamarão, de Espadanedo, de Fornelos, de Moimenta, das Nespereiras (Santo Erício e Santa Marinha), de Piães, de Tarouquela, de Travanca e de Souselo. Correspondia, grosso modo a metade do actual município de Cinfães. Este vasto concelho foi extinto, sendo absorvido no de Cinfães, em 1855. Ora, Sanfins é uma povoação de Piães depreendendo-se por-

O Pelourinho de Sanfins da Beira, em Nespereira, por volta de 1954. Fotografia publicada por Bertino Guimarães (1954)

tanto, que a sede do concelho fosse neste lugar. A este respeito diz-nos o Abade, em 1758: «Sanfins, título e cabeça do concelho, ainda que lá não está o pelourinho». O pelourinho consistia numa estrutura vertical, em pedra, em forma de pilar onde se aplicavam algumas das penas (não a de morte, essa acontecia na forca, geralmente em lugar alto e arredado das povoações) por furtos, insultos, etc. Ora, onde estaria, então, o pelourinho de Sanfins? Em Nespereira, onde ainda se encontra. De facto, o Pelourinho dito de Nespereira, não é mais do que o Pelourinho de Sanfins, sinal de uma interessante e inteligente descentralização dos símbolos concelhios.

O Abade Manuel Ferreira da Silva faz ainda alusão à nascente de um dos dois principais ribeiros da freguesia, o maior, hoje dito de Piães, brotava na Casa de Arca, «assim chamado por ser antigamente o passo e foral das audiências deste concelho», referência ao que hoje designaríamos de câmara municipal e que em 1758 já era no lugar de Casconhe ou Cresconhe, junto da qual havia então «um curral para o gado», curioso apontamento numa terra onde naquele tempo se fazia, em todos os primeiros dias do mês, uma feira de boiada! Por certo antes de 1758 deu-se a mudança da sede concelhia do lugar de Sanfins para o de Cosconhe para o que podem ter contribuído aos nobres da terra, aos quais era entregue o governo da mesma – o poder acompanhava-os e as câmaras eram, muitas vezes, as suas casas ou lugares próximos às mesmas. A este respeito não podemos deixar de chamar a atenção da proximidade da casa de Cimo de Vila, da família Monterróios cujos membros integraram várias vezes o governo do município de Sanfins. As casas do Paço e de audiências e prisão de Cosconhe arderam entre 1850 e 1855, perdendo-se nesse incêndio o arquivo do extinto concelho de Sanfins – e o que então não se perdeu sumiu definitivamente no incêndio da Câmara Municipal de Cinfães, em 1918. Datas de triste memórias para a História da terra.

A Cosconhe liga-se uma página importante e geralmente ignorada da História de Portugal. Nas Inquirições de 1288, mandadas fazer pelo rei D. Dinis III para saber dos seus domínios e evitar abusos nos mesmos, os inquiridores dizem que naquele lugar de criara D. Afonso Henriques o seu aio Egas Moniz. Muito embora esta função tenha sido contestada por alguns historiadores vendo na mitologia que se criou em redor da figura, uma lenda para o enobrecer, certo é que vários documentos atestam a presença do primeiro rei de Portugal em Piães, e mais concretamente em Cosconhe. Devemos realçar, aliás, que este topónimo se liga à linhagem dos de Casconha ou Gasconha, região de França de onde teria provindo a linhagem de Egas Moniz que era, de facto, o maior proprietário do seu tempo nesta região entre o Paiva e o Varosa. Mas Gasconha é afinal o nome de um lugar em Paredes, bem próximo ao mosteiro de Paço de Sousa, onde o mítico Aio se fez sepultar – pedaços de verdades das lendas. Mas vale a pena transcrever o excerto das ditas inquirições: «Freguesia de Santiago de Peayões a quintaa que chamam Cresconhi que fiy de don Egas Moniz é provado que a virom as testemunhas seer onrra [terra de nobres] des que se acordam e que ouviron dizer que o foy de muy longe e que criaron h Yeru din Affonso o primeyro e tragen por onrra os d’Alvarenga toda esta aldeya de Cresconhi que o mays dela é herdade de Carcary [Cárquere] e do Templo (Ordem dos Templários) e do Espital [Ordem dos Hospitalários] […] (4). Como se vê não é coisa de somenos importância, o facto de por Piães ter provavelmente andado no século XII o infante, futuro fundador da nacionalidade, coisa que não tem sequer, honras turísticas no local, pois quem passa por Cresconhe nada vê, nem nada sabe que o lembre – e isto no tempo das rotas e das grandes parangonas pela cultura! Adiante.

Casa da Póvoa. Fotografia de Nuno Resende.

Em Piães, situa-se o maior conjunto de casas nobres do actual município de Cinfães, a saber Quintã de Antemil, Póvoa, Vista Alegre e Cimo de Vila, todas com pedras de armas (brasões) e outras, não menos ilustres, como as do Sequeiro, Reguengo, Souto Justo, Casas Novas, entre outras. E a estas estão associadas várias capelas algumas delas hoje em ruínas – vastíssimo património completamente ignorado. Não desmerecendo outras casas, outras genealogias e outras famílias, da família da casa da Póvoa descendem alguns nomes maiores da História de Portugal, como D. Maria do Pilar Bandeira Monteiro Osório (1831-1887), escritora de quem já falámos no História de Cinfães, ou os deputados às Cortes Joaquim Cabral de Noronha e Meneses e Henrique Cabral de Noronha e Meneses – este delegado do Procurador Régio em Marco de Canaveses, responsável pelo julgamento do famoso José do Telhado, em 1861!

Ainda que não se comprove documentalmente, parece ter sido de Sanfins, o famoso Francisco Rodrigues Cação, famoso médico português do século XVII, autor de várias obras, uma delas pioneira sobre os malefícios do tabaco! Com um tão rico património humano, Santiago de Piães merecia melhor sorte com a sua divulgação, pois quer no sítio em-linha da Câmara Municipal, quer nas páginas dos órgãos de divulgação autárquica local, a Junta de Freguesia, não há se não parcas e incorrectas informações sobre esta terra.

Nuno Resende

NOTAS:

[1] – Costa, Américo; Nunes, José Joaquim – Diccionario chorographico de Portugal Continental e Insular. Porto: Livraria Civilização, 1929-1949, vol. X, pp. 749-751.

[2] – Almeida, Fortunato; Peres, Damião, dir. – História da Igreja em Portugal. Porto: Livraria Civilização, 1971, vol. IV, p. 118.

[3] – Memória transcrita e publicada em Capela, José Viriato, coord.; Matos, Henrique, leitura, notas, etc.ª – As freguesias do Distrito de Viseu nas Memórias Paroquiais de 1758. Braga: [s.e.], 2010. ISBN: 978-972-98662-5-8, p.

[4] – Transcrito e publicado em Sottomayor-Pizarro, José Augusto de, ed. – Portugaliae Monumenta Historica […] Inquisitiones. Inquirições Gerais de D. Diniz de 1288: sentenças de 1290 e Execuções de 1290. 1.ª edição. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 2015. ISBN: 978-989-8647-55-9, p.

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Ex.º: RESENDE, Nuno – «Giraldo Geraldes, o sem pavor». História de Cinfães, https://historiadecinfaes.pt/, consultado em linha em 17-10-2009.

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Professor. Universidade do Porto. Portugal.

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