Ruivais: breve História

Mapa 1: extraído da Carta Militar n.º 136. Ruivais no canto inferior direito.

Ruivais é uma importante povoação da freguesia de Ferreiros de Tendais, município de Cinfães, implantada entre os 450 e os 500 metros de altitude (mapa 1), na encosta voltada a poente do vale da ribeira da Bestança. Apresenta um povoamento entre o disperso e o aglomerado por dois núcleos, um a norte, junto à ermida ou capela de Nossa Senhora dos Milagres e outro, a sul, ambos entre dois pequenos cursos de água, afluentes da Bestança e ambos entre dois cumes que se destacam na paisagem (imagens 1 e 2).

Imagem 1: vista de Ruivais colhida de Tendais (margem oposta do vale da Bestança).
Imagem 2: vista do lugar do santuário em Ruivais, colhida do Norte. Ao fundo, em último plano, o cume do Perneval.

Quase em frente, do outro lado do vale, o lugar de Ruivas da freguesia de Cinfães parece compartir com o de Ruivais a mesma origem toponímica. Ruiva é a designação de uma planta (Rubia tinctorium) de origem mediterrânica utilizada no trabalho de tinturaria, que ainda se encontra pela região: ervas de folhas ásperas com flores amarelas e pequenos bagos.
Em 1258, quando os agentes de D. Afonso III passaram por este território para aferir dos bens régios, encontraram em Ruvaes testemunhas que apontaram no lugar bens dos homens da Ordem do Templo (dois casais) que lhes foram doadas por testamento de certa dona Urraca Pires, no tempo de D. Afonso Henriques. O rei D. Afonso I fez doação à dita D. Urraca de metade da herdade que possuía na «villa» de Ruvaes e ela a entregou à Ordem do Templo. Os inquisidores régios chegaram a ver a carta da doação em rolo que estaria na posse de algum morador na «villa» (vila, no sentido agrário do termo, como aldeia). A Ordem do Templo, dos Templários ou dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão foi fundada em 1119 para ajudar às Cruzadas e proteger os romeiros ou peregrinos na jornada aos Lugares Santos, nomeadamente a Jerusalém. As doações que nobres ou os monarcas faziam a esta Ordem tinham o piedoso propósito de sustentar esta força militar assim garantindo a salvação das suas almas.
Em 1288 já não há referências à Ordem do Templo, mas há-as quanto à do Hospital, isto é, à Ordem dos Cavaleiros Hospitalários que tinha funções semelhantes às do Templo e para as quais passaram alguns bens daquela depois da sua extinção. Havia, então, no lugar de Ruivais duas quintãs (grandes casas com propriedades agrícolas anexas) que pertenciam a Paio Ermiges, e Sancha Ermiges havendo o mesmo Paio outra, em Fandões. Em lugares que julgamos próximos a Ruivais, como Vale de Outeiro e o já lugar de Fendões existiam outras quintãs honradas, ou seja, onde o seu proprietário tinha direitos e prerrogativas, nomeadamente o de impedir a entrada dos fiscais régios (nota 1).
No Numeramento de 1527, o primeiro instrumento estatístico sobre a população de Portugal, Ruivais aparece com 14 moradores designada como Ruyvos (nota 2). O número correspondia a fogos e para calcular o número de habitantes por fogo, convencionou-se utilizar uma média de 4,3-4,8 habitantes, no que resultaria para Ruivais, em uma população de 60,2 a 67,2 habitantes, no início do século XVI (nota 3).
No foral atribuído por D. Manuel I a Ferreiros de Tendais, a 6 de Setembro de 1513, referem-se dois casais do rei em Ruivais, isto é, provavelmente duas casas ou fogos, com os respectivos caseiros, que pagavam foro directo à Coroa (nota 4).
Infelizmente para o século XVIII não dispomos de informação sobre a população de Ruivais, uma vez que o abade de Ferreiros de Tendais não elencou, na resposta ao inquérito paroquial de 1758, nem os moradores (fogos), nem os vizinhos ou fregueses de cada lugar da sua paróquia. Contudo, supomos que Ruivais se incluísse entre os lugares maiores e mais importantes, porquanto no mesmo documento se refere a realização, ali, de «uma feira franca a quinze de Agosto» (nota 5). As feiras francas eram assim designadas porque estavam dispensadas (franqueadas) de certos impostos, nomeadamente o da portagem, o que estimulava a afluência de mercadores. Devia ser, por isso, mercado farto e frequentado por muitos vendedores e compradores.
Mas outro elemento concorria para tornar Ruivais um lugar particularmente importante, quer dentro da freguesia e do município de Ferreiros de Tendais (extinto em 1856) quer na região: nele se localizava um importante santuário, dedicado à Virgem dos Milagres (imagem 3).

Imagem 3: pagela de Nossa Senhora dos Milagres dos Ruivais, s/data de edição (c. 1980). Col. particular de Nuno Resende.
Imagem 4: escultura da Virgem dos Milagres. Fotografia de Nuno Resende, 2004.

O culto a Maria é particularmente antigo em Ferreiros de Tendais, documentado no topónimo «Sancta Maria», povoação a sul de Ruivais (hoje chamada Aldeia). É provável que designasse um templo, entretanto, desaparecido (substituído pela ermida da Virgem dos Prazeres), nas proximidades do «Castro Touram», antigo povoado da Idade do Ferro e fortificação talvez aproveitava pelos cristãos no avanço da Reconquista ao longo do vale da Bestança. Hoje ainda se reconhecem algumas ruínas desse povoado e dessa fortificação no chamado Monte das Coroas, que já foi alvo de escavações e estudos arqueológicos, infelizmente suspensos.
A Virgem dos Milagres de Ruivais apresenta-se como uma Senhora de braços abertos (imagem 4), de olhar exultante para o céu. Trata-se de uma imagem de roca, vestida, que poderá ter substituído uma outra mais antiga, talvez uma Virgem do Leite que, à semelhança da de Cales, em São Cristóvão de Nogueira, auferiu grande fama na Idade Média, por proteger os nascimentos e o crescimento dos homens e das culturas. De resto, a uma tampa sepulcral existente no adro do santuário  liga-se uma tradição de derramar algumas gotas de leite materna para que àquela mãe nunca faltassem alimento ao seu filho. É, contudo, uma Virgem da Assunção, como se infere pela data da sua comemoração litúrgica, como refere o abade, em 1758:

«Na capela de N. Senhora de Assunção do Lugar de Ruivais acodem a ele algumas romagens em todo o ano principalmente em as oitavas da Páscoa, e do Espirito Santo e dia de N. Senhora em Agosto» (nota 6).

Imagem 5: ermida-santuário vista de noroeste.

 

 

Imagem 6: retábulos colaterais e capela-mor do santuário da Virgem dos Milagres de Ruivais. Foto de NR (2004).
Imagem 8
Imagem 7

As dimensões do santuário (imagem 5) confirmam a importância da ermida: dois corpos, capela-mor e nave, justapostos longitudinalmente no sentido este-oeste, posição que confirma a fundação medieval, que obrigava a este posicionamento (dito canónico). Tem torre sineira, de fábrica recente (1968). No interior três retábulos de transição maneirista para o barroco nacional (da segunda metade do século XVII), profundamente prejudicados por repintes e pretensos douramentos modernos. No retábulo mor, a imagem da Virgem dos milagres, ao centro do retábulo em nicho envidraçado. Na nave (imagem 6), retábulos colaterais, o do evangelho (lado esquerdo a partir da observação do fiel) de São Sebastião, e o da Epístola (lado direito), de devoção mariana. São de destacar as pinturas a óleo sobre madeira no ático (remate dos retábulos), um, representando uma Imaculada Conceição (epístola) (imagem 8) e outro o Salvador (Evangelho) (imagem 7). A ausência de reboco quer interior quer exteriormente deixa uma sensação de desconforto, retirando luminosidade ao templo.

Ao lugar-santuário afluíram ao longo dos séculos muitas gentes, inclusive as do governo da terra.

No início do século XIX existia, em Ruivais, a Casa da Câmara de Ferreiros de Tendais, de que talvez seja memória a pedra de armas do reino de Portugal que encima ainda hoje um fontanário junto ao santuário da Virgem dos Milagres (imagem 10). A escolha do lugar para instalar a sede do concelho, compreende-se pela geografia: está a sensivelmente a maior do termo do município, entre o Douro e a serra, ao longo de um antigo caminho ou estrada que ligava o litoral ao interior beirão. Foi nesta câmara que, em 1830:

«concorrendo em massa grande numero de cidadãos por todos espontaneamente, foi aclamado em altas vozes, com distintas provas de Júbilo, e Contentamento a […] Santa Religião Católica Romana e Senhor Dom Miguel Primeiro, Legitimo Rei de Portugal na Plenitude dos Direitos que Seus / Predecessores governarão este Reino, e Sua Augusta Mãe / e Imperatriz Rainha, a Senhora Dona Carlota Joaquina» (nota 7).

Como refere o padre Alfredo Pimenta na sua obra «Brasões de Cinfães»:

«Pelos fins do séc. XVII, a casa estava caída. Por isso, entre 1692 e 1782, as sessões camarárias e os julgamentos passaram a fazer-se no lugar de Boassas, donde eram naturais os onze juízes que, naquele período sucessivamente serviram o concelho. § A 23 de Setembro de 1782, as audiências voltaram a realizar-se no Paço dos Ruivais, entretanto reconstruído. § A extinção do concelho em 1855 votou a casa da Câmara ao abandono. Mais tarde foi adquirida por António de Carvalho Correia (o Chocolate dos Ruivais) que dela fez a sua vivenda» (nota 8).

Imagem 9. Foto de NR (2004).

A este respeito conhecemos a notícia de venda e arrematação da velha casa da câmara, num anúncio do jornal A Justiça de Sinfães, de 1897 que a descreve como uma «caza arruinada, sita em Ruivaes, de Ferreiros (antigos Paços do extinto julgado)».
A Ruivais e ao lugar próximo de Matelos liga-se uma tradição (ver mapa 1), fundamentada historicamente por alguns documentos e testemunhos, que alude à existência de comunidades de cripto-judeus ou de cristãos novos. Cripto-judeus eram indivíduos que continuavam a professar a Fé Hebraica, ocultos da restante comunidade, e cristãos-novos os judeus convertidos à Fé Católica. Por lidarem ambos com o estigma e a discriminação dos cristãos-velhos, não deixaram vestígios das suas práticas, mas no século XVIII houve uma devassa a certas famílias de Ferreiros de Tendais pela Inquisição de Coimbra que levantou suspeitas antigas. O tema já foi tratado por Miguel Resende, no jornal Miradouro (nota 9) , resgatando a tradição

«muy antiquíssima que atingam [sic] te huns almocreves de huma das ditas freguesias [Oliveira, Ferreiros de Tendais e Cinfães] […] conduziram de Escalhão (que fica nas Arrayas) duas raparigas que encontrão chorando, que hião fugindo, por lhes terem seus pays para o Santo Oficio; e que uma destas casara no lugar de Ruivaes e outra no lugar de Matelos […]» (nota 10).

Em 2005 no decurso da elaboração da nossa dissertação de mestrado (nota 11) lográmos descobrir outra referência a este respeito, num documento do arquivo da casa do Revogato, em Oliveira do Douro, que pretendia ilibar da «culpa» algumas famílias locais:

«O dizerem os mordazes e mal intencionados que o lugar de Ruivais padece fama de enfecta naçam nehum [sic] credito mereçe por lhe darem fundamento jurídico mais do que dizerem padece fama, esta de der e ter por vaga e menos verdadeira pois tanto os antigos como os prezentes, sempre viverão e vivem catolicamente sem que conste que em tempo algum prevaricaçem nem foçe comprehendidos por similhante matéria, por que se alguma couza ouveça ho avião de declarar os que sostentam a fantástica fama, para prova do seu dizer» (nota 12).

Estes boatos implicavam certos indivíduos com os apelidos Botelho e Barros, que depois se ligaram a outras famílias da região da Bestança, nomeadamente dos lugares de Açoreira, Avitoure, Fundoais e Tintureiros onde, durante o século XVII, se instalou uma família com ascendência comprovadamente judaica, os Barros/Cunha Soutomaior (nota 13).
Mas a prova mais consistente que atesta a presença de cristãos novos em Ruivais é a denúncia feita a 5 de Julho de 1544 perante o Tribunal da Inquisição em Lamego por Catarina Lopes, criada e mulher solteira, moradora na Rua do Castelo daquela cidade, contra Isabel Gonçalves, cristã-nova, mulher de Jácome Luís, moradores em Ruivais, do concelho de Ferreiros de Tendais, por folgar ao sábado e fazer ceias melhoradas às sextas-feiras (nota 14).
Finalmente, e ainda que não se conheçam a sua origem familiar a Ruivais parece ligar-se a figura de um grande canonista e escritor do século XVII. Canonista era o especialista em Direito Canónico, formação que parece ter tido António Cardoso do Amaral, sobre o qual o enciclopedista Barbosa Machado escreveu:

ANTONIO CARDOSO DO AMARAL natural da Vila de «Ruyvães» do Bispado de Lamego, Presbítero igualmente pio, e douto Professor dos Sagrados Cânones, e Reitor da Igreja de S. Lourenço da Vila de Santarém, da qual tomou posse em o ano de 1598 e depois de a administrar com zelo pastoral a renunciou em o ano de 1614. Para instruir aos Juízes, Advogados, e Confessores com as opiniões mais prováveis de hum, e outro Direito, e da Teologia Moral publicou digesta por ordem alfabética: Summa seu praxis judicum, et advocatorum á Sacris Canonibus deducta, et ipsismet conformata. Ulyssipone apud Ant. Alvares 1610 […] (nota 15) (imagem 11).

Imagem 10: folha de rosto da única obra conhecida, publicada de António Cardoso do Amaral.

A circunstância de, na Diocese de Lamego não se conhecer outra localidade designada Ruivães ou Ruivais e, também, o facto de serem comuns, em Ferreiros de Tendais e na vizinha paróquia de Oliveira do Douro os apelidos CARDOSO e AMARAL dão força à origem do ilustrado reitor de São Lourenço de Santarém, razão pela qual merecia ser recordado pelos seus conterrâneos.

 

NUNO RESENDE

 

NOTAS

(1) – SOTTOMAYOR-PIZARRO, José Augusto de, ed. – Portugaliae Monumenta Historica […] Inquisitiones. Inquirições Gerais de D. Diniz de 1288: sentenças de 1290 e Execuções de 1290. 1.ª edição. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 2015. ISBN: 978-989-8647-55-9, pp. 433-435.
(2) – Para o cálculo dos números limites de habitantes, seguimos a proposta de João José Alves Dias, na sua obra «Gentes e espaços» (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/JNICT, 1996, vol. I), onde o mesmo resume as várias opiniões de autores posteriores sobre a média dos fogos: «Até que se façam estudos regionais e locais, com fontes exactas e sólidas, será preferível utilizar um limite inferior e outro superior para o cálculo do número de habitantes por fogo. Esses limites serão os já famoso «coeficientes» de quarto e cinco. Contudo, é talvez possível, para o Portugal da primeira metade do século XVI, apertar um pouco mais a grelha, fixando entre 4,3 e 4,8, o número de pessoas, em média, por cada agregado familiar-doméstico», op. cit., p. 61.
(3) – COLLAÇO, João Tello de Magalhães – Cadastro da População do Reino (1527). Lisboa: [edição do autor], 1931, p. 146.
(4) – MARQUES, Maria Alegria; RESENDE, Nuno – Terras e gentes: os forais manuelinos do actual concelho de Cinfães. [s.l.]: Câmara Municipal de Cinfães, 2013. ISBN: 978-989-98362-0-4, p. 121.
(5) – CAPELA, José Viriato, coord.; MATOS, Henrique, leitura, notas, etc.ª – As freguesias do Distrito de Viseu nas Memórias Paroquiais de 1758. Braga: [s.e.], 2010. ISBN: 978-972-98662-5-8, p. 233.
(6) – Idem, ibid., p. 233.
(7) – AHCR – Arquivo Histórico da Casa do Revogato, doc. 0225, fl. 1.
(8) – PIMENTA, Alfredo A. – Brasões de Cinfães. [s.l.]: edição do autor, 1976 (policopiado).
(9)- REZENDE, Miguel – «Cristãos-velhos e Cristãos-novos em Cinfães». Jornal Miradouro (1992).
(10) – Idem, ibid., n.º 877 (1992), p. 8.
(11) – RESENDE, Nuno – Vínculos quebrantáveis: o morgadio de Boassas e suas relações (sécs. XVI-XVIII). Coimbra: Palimage, 2012. ISBN: 978-989-703-052-9.
(12) – AHCR. Ms. 0025 [Arvore genealógica de Manuel Bernardes Pinto de Castro, da quinta da Várzea; (sec. XVIII)], fl. 6 verso.
(13) – RESENDE, Nuno – «Terra prometida? A quinta de Tintureiros e os Soutomaiores Cunhas». Boletim Cultural de Esposende. Vol. 2.ª série. n.º 4 (2015). p. 121-147.
(14)- Publicado em FERREIRA, Maria Manuela de Sousa Vaquero Freitas – O Tribunal da Inquisição de Lamego: contributo para o estudo da Inquisição no Norte de Portugal. Vila Real: Tese de Doutoramento em Cultura Portuguesa apresentada à UTAD, 2013, p. 168. Disponível em WWW: http://hdl.handle.net/10348/2811
(15)- AMARAL, António Cardoso do – Liber utilissimus judicibus, et advocatis / compositus ab Antonio Cardoso do Amaral […]. Lisboa: Antonius Alvarez, 1610. Disponível em http://purl.pt/13997

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Professor. Universidade do Porto. Portugal.

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