Como temos vindo a mostrar pelo projecto «Rostos da Emigração», de Cinfães, foram muitos e muitas cinfanenses que, sobretudo nos últimos dois séculos, rumaram em busca de outra vida melhor, fora da sua terra.
Contudo, não obstante as fotografias, os dados oficiais e «frios» dos pedidos de passaporte ou dos cartões de embarque, raras vezes temos a possibilidade de escutar a voz individual e perceber as razões, motivações ou obrigações de cada um para deixar a sua terra, a sua família e os seus amigos partindo para um mundo desconhecido, tantas vezes ingrato.
A carta que abaixo publicamos é uma «carta de chamada», datada de 1912, de Francisco Gonçalves Magalhães para a sua mulher Maria de Sousa, do lugar de Soutelo, na freguesia de Tendais. Ele já estava a viver em Barra Mansa, uma povoação ao sul do Rio de Janeiro. As «cartas de chamadas» constituíam garantias do emigrante, perante as autoridades, possibilitando-lhes documentar meios de subsistência na terra de destino e, sobretudo, indivíduos (geralmente familiares) que o providenciassem.
À data da carta, 1912, o casal tinha quatro filhos: Malvina, António, Manuel e Deolinda, que deveriam seguir com a mãe, todos na companhia de vizinhos para o Brasil, reunindo-se com o marido e o pai. Escrita num tom doce paterno de saudades, a carta revela aspectos da vida familiar e até social, desde questões de dívidas, de propriedades ou de coisas tão comezinhas como o pedido de sementes e de um «pedão» que Francisco faz a sua mulher decidindo-se esta ir juntar-se-lhe ao Brasil.
Dos dados genealógicos que recolhemos sobre esta família pouco, à partida, nos explicaria a sua necessidade para emigrarem, pois Maria de Sousa era filha de um casal de abastados lavradores de Soutelo. Porém, a circunstância de três dos seus quatro filhos nascerem em localidades distantes da terra natal dos seus pais, como Oliveira do Douro (Cinfães), Santiago de Almedo e Linhares (em Carrazeda de Ansiães), sugere-nos que este casal assegurava a sua subsistência pela jorna, em actividades agrícolas, talvez sazonais.
Mas o que fica da leitura desta carta é o tom cuidado e saudoso de um homem que, do outro lado do Atlântico, exorta a sua mulher e filhos, a juntarem-se-lhe não sem lhes incutir ponderação e cuidados como de evitar a barra do Porto, tão perigosa para a navegação.
Barra Mansa, 8 de Setembro de 1912
Minha querida mulher, hoje mesmo lancei a mão a pena para saber de tua saude e dos nossos filhos que a minha é bôa graças a Deus, ca recebi a tua carta aonde fiquei muito contente em saber que voces todos ficaram de saude, e aonde fiquei muito contente em o nosso Manoel já ser homem de fazer uma viagem tão comprida eu ca estou a espera delle pra melle ajudar que elle a de ser digno de tudo eu cada dia me parece um ano por não ver os meus filhos a respeito a tua viagem sim é bem que venhas na companhia dos nossos bizinhos, mandame dizer o dinheiro que gastas para mandar a demora é só de saber a quantia que te é preciso isto é se fôr tua bontade se ves que não tens vontade de vir não venhas eu custame muito a estar ausente da minha familia mas para ahi não sei quando irei porque eu vim muito cheio de esfolar fragas como tú sabes a nossa vida e então assim me manda dizer que eu estimo muito passar o Natal junto com voces sabe Deus o meu coração no anno passado de não estar na vossa companhia como tu sabes o meu genio que eu dou a bida por vós, mais em todo o caso eu não te esforço para tua bires eu sempre heide ire sofrendo com paciencia se resolveres a vires as terras entregas a meu pae so ficará pagando os juros do dinheiro que nos devemos porque eu já não posso pagar tudo se a tua viagem fosse em Março ou Abril eu dava um geito a vida a pagar essa divida mas assim não posso mas tivermos saude breve a pagaremos diz ao Manuel Ferreira e ao Joaquim Rigidor [1] que eu lhe mando pedir o favor de quando elles quitarem nos papeis delles para tambem te ensinar como tu has de fazer eu tudo lhe agradecerei a bem fazer que elles te fizerem eu brevemente escrevo ao meu pae para elle tomar conta das terras si elle não quizer ficar com ellas tu arrendaralas a quem tu vejas que olha por ellas e que // pagem [sic] a renda mas o melhor é elle ficar com ellas si as não puder fazer que as deixe ficar pra lameiro, a respeito ao recibo do dinheiro, que te deu o Sr. Damião [2] tu é que deves pasar o recibo que elle o que passou o recevo a mim do dinheiro que lhe eu dei e o Sr. Damião deve de escrever uma carta de avizo ao Venancio e elle lhe responderá o seguinte NB não demore a escrever-me para eu assim governar trata os papeis da tua viagem e a passagem é bom comprala em Lisboa que a barra do Porto é muito ruim de passar com isto não te enfado mais darás um abraço e um beijo a cada um dos nossos filhos e muitas recomendações a todos os nossos bizinhos e a quem por mim perguntar e as minhas para comtigo só vesta terão fim Deus queira que seja brebe a demora é a resposta desta carta porque não posso te mandar a quantia do dinheiro sem saber quanto é a Deus até breve cada dia me parece um ano sou este teu homem que a vida te tes [?] deseja por largos annos
Francisco Gonçalves Magalhães etc
NB deves trazer sementes de todos feijões que nós temos e de couve trazme tamem semente de cebolla as de trazer tamem um pedão Franciso de Magalhães adeus, adeus adeus.
Arquivo Distrital de Viseu, Governo Civil, Inspecção, licenciamento, fiscalização e segurança, Mobilidade demográfica, Pedidos de passaportes (1859/1960), Pedido de passaporte de Maria de Sousa 1912-10-31/1912-10-31, PT/ADVIS/AC/GCVIS/H-D/001/08295, [documento 5]
NOTAS
[1] – Regedor – figura da administração local equivalente ao actual presidente de junta de freguesia.
[2] Pode tratar-se de Damião Cardoso de Sousa, de Soutelo e da família de Maria de Sousa, que também emigrou para o Brasil em 1879.
Professor. Universidade do Porto. Portugal.
Por força de pesquisas genealógicas da família do meu marido, eis que “esbarrei” com Boassas! Não que, em particular, a sua família tenha origens por esta linda terra, mas porque Armando Teixeira Calhandro, que nela nasceu em 1907, filho de Bernardino Teixeira Calhandro e Maria de Jesus Ribeiro, terá emigrado para o Brasil (Rio de Janeiro) e uma parte da sua vida de empreendedor cruzou-se com o avô paterno do meu marido, nascido em Rio de Janeiro (1891),mas filho de pais portugueses, também eles oriundos da terra do afamado vinho moscatel. Amei este artigo do prof. Nuno Resende e logo me deu vontade de continuar esta empreitada, a qual já leva alguns anos com inúmeras descobertas, apenas ficando a faltar uma foto desse avô, que o meu marido nunca conheceu assim como a sua mãe. Gostaria pois, caso haja interesse para a história das gentes de Boassas, disponibilizar uma pequena pesquisa que efectuei sobre um filho da terra, do Armando Teixeira Calhandro, que faleceu no Rio de Janeiro em 1973. Essa disponibilidade prende-se com o facto de tentar encontrar os seus descendentes (que foram 4), quer pelas redes sociais ou ainda por familiares que ainda possam existir em Boassas. Não conheço Boassas mas, com toda a certeza, será uma terra em meu próximo itinerário de viagem pela região do distrito de Viseu. Como sou uma apaixonada por História, e apesar de nada ter a ver com essa região ou até com Favaios, tenho um carinho especial por estas publicações que engrandecem não só a terra em si mas sobretudo as suas gentes. O meu agradecimento por dar a conhecer Boassas.
Muito obrigado pelas amáveis palavras!
Se encontrarmos dados que lhe possam interessar, avisamo-la!
Cumprimentos,
Nuno Resende