Embora tornada obrigatória desde os anos 40 do século XIX, a universalização da instrução primária foi, em Portugal, um processo muito lento e sujeito, ao longo do tempo, a diversos modelos de responsabilidade e de gestão.
O breve texto que aqui deixamos analisa a situação do concelho de Cinfães no fim da fase em que a responsabilidade pela Instrução Primária foi atribuída diretamente aos concelhos. Efetivamente, no contexto de valorização do papel dos municípios como agentes na sociedade local e de transferência de responsabilidades do poder central, assiste-se, entre 1878 e 1892, àquilo que ficou conhecido como a Reforma de Rodrigues Sampaio [1](Lei de 02/05/1878).
A reforma de Sampaio atribuía às câmaras municipais e às juntas de paróquia um extenso leque de responsabilidades quanto à instrução primária, excluindo as de natureza pedagógica, que iam desde o pagamento dos vencimentos aos professores, passando pela manutenção e/ou construção de equipamentos escolares, até à definição e manutenção de uma rede escolar local. A transferência destas responsabilidades representou um grande esforço financeiro para os municípios, que não foi acompanhado por uma transferência financeira do Estado Central. No entanto, a receita corrente da esmagadora maioria das câmaras municipais estava muito longe de poder concretizar estas novas responsabilidades, particularmente o vencimento dos docentes, que representava a fatia financeira mais relevante. Por isso, o Governo autoriza, a partir de 1881, aos municípios o lançamento de um novo adicional municipal às contribuições diretas (impostos sobre a propriedade predial e industrial), na ordem dos 15%.
Apesar do esforço de muitas administrações municipais em fazer progredir a oferta escolar local, a verdade é que o problema da sustentação financeira deste processo se manteve e constituiu uma fortíssima limitação à ação municipal. Assim, em 1892, por vontade das partes, ou seja, o Governo Central e os concelhos, a gestão da instrução primária volta a ser responsabilidade do Governo, não sem que os cidadãos continuem a ser taxados com o imposto específico para a instrução primária e que as câmaras continuem com responsabilidades sobre o parque escolar.
A Reforma de Rodrigues Sampaio organizava a instrução primária em dois graus, designados respetivamente Elementar e Complementar, sendo que a frequência do grau elementar era obrigatória para todas as crianças, meninos e meninas, entre os 6 e os 12 anos.
No ensino elementar, os rapazes eram sujeitos a um currículo que compreendia a leitura, a escrita, as quatro operações sobre números inteiros e fracionários, elementos de gramática, princípios do sistema métrico-decimal, princípios de desenho e moral e doutrina cristã. Para as meninas, além deste currículo, acrescentavam-se “trabalhos de agulha necessários às classes menos abastadas”. Trata-se, portanto, de um currículo que aponta para competências mínimas de leitura, escrita e matemática, com a necessária componente moral e religiosa, e destinado às classes menos abastadas.
Ao contrário, o grau complementar alargava e aprofundava saberes e competências vários. Para os rapazes, a leitura é agora acompanhada pela capacidade de recitação em prosa e verso, a escrita, pela proficiência caligráfica, as operações básicas com números pela aritmética e geometria, a moral e doutrina cristã pela história sagrada; e novos domínios são introduzidos, como a história e geografia, o desenho, a higiene (noções elementares), a agricultura (noções elementares), a ginástica, o canto coral e os direitos e deveres do cidadão. Para as meninas, as noções elementares de agricultura, a ginástica, o canto coral e os direitos e deveres do cidadão eram substituídos pelos “deveres das mães de família e as prendas de bordar a cores, tomar medidas, tirar moldes e fazer rendas e flores” (Lei de 02/05/1878, artº 3º, único). Trata-se, portanto, de um currículo muito mais multidisciplinar, destinado a desenvolver saberes e competências de vária natureza, incluindo os mais operacionais, e com uma clara desigualdade de género, que corresponde, aliás, ao papel que era atribuído às mulheres na sociedade oitocentista. Por exemplo, não é de estranhar que as meninas não tivessem necessidade da matéria sobre direitos e deveres do cidadão, onde avultavam as questões ligadas à participação política, já que as mulheres não tinham qualquer papel político legal definido.
No final desta fase, ou seja, por volta dos anos de 1891/1892 como se caracterizava a oferta escolar no concelho de Cinfães?
Nos anos letivos de 1891 e 1892, o concelho era dotado de um corpo de 22 professores e mestras de meninas (como então se designavam), distribuídos pela maioria das 17 freguesias que o compunham (cf. Tabela 1). Os professores eram tendencialmente encarregues de lecionar turmas de rapazes e as mestras turmas de meninas; embora não seja de excluir a existência de turmas mistas. Por exemplo, a professora Emília de Jesus Lage, na freguesia de Cinfães, encarregue de lecionar o grau de ensino complementar teria certamente na sua turma rapazes e raparigas.
Tabela 1: Professores de instrução primária do concelho de Cinfães (1891-1892)
Freguesia | Professores | Mestras das meninas |
Alhões | ||
Bustelo | Alfredo Moreira Barros | |
Espadanedo | José de Oliveira Júnior/ Adriano Pinto de Miranda | |
Ferreiros de Tendais | Manuel Alves da Fonseca | |
Fornelos | Joaquim Cardoso de Sousa | Maria José |
Gralheira | ||
Moimenta | ||
Nespereira | José Joaquim Correia | Maria do Rosário Cardoso |
Oliveira do Douro | Pe José Ribeiro da Cunha / José Augusto Pinto de Sousa Abreu [2] | Maria Augusta da Purificação Sousa Pereira Abreu |
Ramires | ||
São Cristóvão de Nogueira | José Feliciano de Barbedo | Maria Emília Avelino |
São Tiago de Piães | Inácio de Sousa Bravo | |
Cinfães | José Joaquim de Sousa Cirne | Emília de Jesus Lage |
Souselo | António Teixeira Pinto Leão | Rosa Teresa da Conceição Moreira |
Tarouquela | Augusto do Amaral Semblano | Maria José do Amaral Semblano |
Tendais | Albino Pinto da Rocha | Ana de Jesus Luna |
Travanca | João Vieira dos Santos |
Fontes: Processos de Contas da CM de Cinfães nos anos económicos de 1891 e 1892
Globalmente, a oferta escolar cobria sobretudo o ensino elementar e destinava-se maioritariamente aos rapazes, embora a existência de 8 mestras de meninas não seja de desvalorizar. Aliás, 7 destas aulas foram criadas durante a vigência desta reforma, entre 1/07/1881 e 31/12/1888.
No que respeita aos professores e analisando a sua distribuição pelas freguesias, verifica-se, em primeiro lugar, que apenas as muito pequenas, como Alhões, Gralheira, Moimenta e Ramires não dispõem de professores. Todas estas freguesias têm, de acordo com os dados do censo populacional de 1890, menos de 500 habitantes [3]. No entanto, apesar de se integrar também nesta categoria, Bustelo, uma freguesia com 421 habitantes, dispõe de um professor. Tal pode ficar a dever-se a várias circunstâncias específicas, nomeadamente a iniciativa da Junta de Paróquia ou de algum benemérito local. Desta forma, mais de 76% das freguesias dispõe de um professor nesta altura. A freguesia de Oliveira do Douro é a única que conta com dois professores, sendo, de facto, em termos populacionais, a segunda maior freguesia do concelho, logo a seguir a Cinfães.
Já no que respeita às mestras das meninas, a sua representatividade em termos de freguesias é muito menor, menos de 50% das freguesias (47%) dispõem de uma mestra. É sobretudo nas maiores freguesias, com mais de 2.000 habitantes, onde o ensino para raparigas está presente. Excetua-se o caso de Tarouquela, uma freguesia com apenas 843 habitantes.
Quanto ganhavam os professores? O vencimento dos professores era constituído por um ordenado base e por um conjunto diversificado de gratificações possíveis: gratificação de frequência, devida por cada aluno que frequentasse 5/6 das aulas previstas; gratificação de exames, devida por cada aluno que concluísse com sucesso o exame do ensino elementar ou complementar e gratificação pelo serviço de exames, devida quando o professor participava no respetivo júri. O vencimento base do professor ou professora do ensino elementar é de 120.000rs/ano e o do ensino complementar de 180.000rs. Este nível de vencimento base é ligeiramente superior ao do Amanuense da Câmara (100,000rs), mas menos de metade do Secretário (260,000rs), o funcionário superior da administração municipal; e ainda muito menos do funcionário mais bem pago, o médico de partido (600,000rs). Os professores auferem, portanto, um vencimento modesto e só as gratificações permitem mais alguma disponibilidade, embora de dimensão reduzida. Refira-se, no entanto, que a meio dos anos 80, o governo determina um aumento do vencimento dos docentes, na ordem dos 25%, desde que com uma avaliação de desempenho de Bom durante 6 anos.
Esta oferta escolar conseguia abarcar um reduzido número de crianças em idade escolar. Efetivamente, de acordo com os dados do Censo de 1890, existiam no concelho 3 925 crianças em idade escolar (crianças entre os 6 e os 12 anos). Ora, se considerarmos um máximo de 60 alunos por classe (uma classe podia ter mais que 60 alunos, mas o professor deveria, nesse caso, ter um ajudante; o que só acontece em Souselo) e que cada professor lecionava apenas uma classe (o turno escolar do ensino elementar durava entre 4 a 6 horas/dia, dividido em duas sessões, uma de manhã, outra de tarde), verifica-se que, no máximo, apenas 33,63% das crianças em idade escolar tinham lugar na rede de escolas/aulas que tinha vindo a ser implementada. Esta baixa taxa de cobertura da rede escolar justifica, em primeiro lugar, os altos níveis de analfabetismo que este, como outros concelhos, conhecia ainda nesta altura. De acordo com os dados do Censo que temos vindo a referir, a taxa de analfabetismo do concelho rondava, em 1890, os 86%.
Na interpretação destes números e cálculos há, no entanto, que ter em linha de conta outras realidades. Em primeiro, e apesar da evolução do sistema estatístico nacional durante o século XIX, não pode esperar-se a mesma qualidade dos dados recolhidos nos censos atuais. Por outro lado, a compreensão do fenómeno do analfabetismo exige entrar em linha de conta, por um lado, com a dificuldade de aceitação da importância da escolaridade por parte da população e, por outro, com a utilização da força de mão-de-obra das crianças, que as afastava muitas vezes da frequência escolar, ou a tornava muito intermitente. A Reforma de Rodrigues Sampaio, apesar de estabelecer multas para os encarregados de educação [4] das crianças que não frequentassem regularmente as aulas, acaba por admitir que “podem ser excecionalmente dispensadas da frequência de uma das aulas diurnas, pelo delegado paroquial, as crianças de mais de nove anos que estiverem empregadas em trabalhos agrícolas ou industriais” (Lei de 02/05/1878, artº 17, 3º). A título de exemplo, refira-se que, de acordo com os dados do Relatório do Inspetor Escolar Joaquim Pais da Cunha, foram, no concelho de Cinfães e para o ano letivo de 1881/1882, recenseados 1 861 alunos, mas destes só se matricularam 732, ou seja, menos de 40% (39,3%) e destes últimos apenas 360 tiveram uma frequência regular das aulas, ou seja, menos de metade (49,18%).
No final do século XIX, e apesar da existência de professores de ensino elementar em quase todas as freguesias, a oferta disponível no concelho de Cinfães estava longe de cobrir o universo das crianças legalmente em idade escolar e privilegiava claramente os rapazes face às meninas, embora existissem já 8 mestras que poderiam, no limite máximo, ensinar 480 crianças do sexo feminino anualmente.
Paulo Leitão
NOTAS:
[1] -António Rodrigues Sampaio (1806-1882), jornalista, político e Par do Reino, pertencia, nesta altura, ao ministério comandado por Fontes Pereira de Melo, com a pasta do Reino. Foi igualmente o responsável pelo novo Código Administrativo de 1878.
[2] -Dois professores em lecionação ao mesmo tempo.
[3] -Os valores da população que usamos dizem respeito à população de facto, ou seja, a que esteve presente na altura do recenseamento.
[4] -Usamos o termo “encarregado de educação”, porque, na ausência dos pais, outros familiares podiam ter esta responsabilidade.
FONTES:
– Censo da população do Reino de Portugal no dia 1 de dezembro de 1890. Lisboa: Imprensa Nacional, 1900.
– Cunha, Joaquim Pais da Cunha – Relatório anual apresentado ao Exmº Sr. Ministro do Reino pelo Inspetor da 6ª Circunscrição Escolar do Distrito de Viseu (…): ano letivo 1881-1882. Viseu: Tipografia do Viriato, 1882.
– Governo Civil de Viseu – Relação das cadeiras de ensino elementar e complementar… criadas pelas câmaras municipais desde 1 de julho de 1881 e 31 de dezembro de 1882. 1883.
– Portugal. Leis e decretos, etc. – Lei de 02/05/1878
– Processos de Contas da Câmara Municipal de Cinfães dos anos económicos de 1891 e 1892

Professor. Universidade do Porto. Portugal.