ALHOENS. Lugar na Provincia da Beira, Bispado de Lamego, destricto do Douro, Comarca de Barcellos, Concelho de Ferreiros. tem vinte e tres fógos, e Igreja Paroquial da invocação de S. pelagio, com tres altares, o mayor em que está a imagem do Santo Patrono, e dous collateraes, com tres Confrarias, a de S. pelagio, a de Jesu, e a de Nossa Senhora. Acha-se fundada esta igreja fóra do povoado, mas pouco distante, em terra aspera, de penedia bruta, nas portas da serra de Monte de Muro, e por esta causa he o clima da terra aspero, e frio; e por isso só produz centeyo e caça miuda do monte.
O Paroco he Cura, e tem de renda quarenta alqueires de pão, vinte almudes de vinho, e seis mil reis em dinheiro, tudo pago pela Comenda da Ermida.
Diccionario Geographico (1747) (1)
Alhões tem a sorte de integrar um dos dois únicos volumes do primeiro dicionário geográfico de Portugal, projecto interrompido pelo terramoto de 1755. Elaborado através de inquéritos aos párocos das freguesias, coligidos em Lisboa por um sacerdote chamado Luís Cardoso, todos os documentos enviados antes de 1747 foram destruídos pelo Grande Terramoto. A experiência voltou a repetir-se em 1758, mas só as povoações com letras iniciais de A a C são possíveis de serem comparadas em ambas as descrições, elaboradas entre as décadas de 1730-40 e a de 1750. Alhões é uma delas.
Comecemos pelo texto do Dicionário de 1747, que é muito sintético, pois resume as informações que o padre Luís Cardoso recebeu do então Cura de Alhões. Nesta altura, esta pequena aldeia de 23 casas (fogos), pertencia à província militar da Beira, à Diocese (Bispado) de Lamego que estava subdividida em distritos eclesiásticos e Alhões integrava o do Douro. Pertencia, também, à Comarca Judicial de Barcelos, pois Ferreiros de Tendais, a cujo concelho pertencia, era da Casa ou Ducado de Bragança. Este enorme Estado dentro do Estado cujos Duques acabaram por tornar-se reis de Portugal em 1640, tinha uma organização semelhante à da Coroa Portuguesa, tendo tribunais próprios, como o de Barcelos, onde iam as causas em segunda instância (as primeiras ficavam pelos tribunais de Ferreiros de Tendais).
Curiosa é a descrição do lugar da igreja, distante da aldeia e a existência, naquela, de um cura sustentado pela Comenda da Ermida. Ora, a Comenda da Ermida era o que, no século XVIII, restava do Mosteiro da Ordem Premonstratense, cujo ramo português estava sediado na igreja da Ermida do Paiva. Os premonstratenses eram assim chamados por virem de Premontré, uma comuna francesa no departamento de Aisne, no norte de França. Como vieram, de tão longe parar estes monges a um obscuro lugarejo do rio Paiva e como obtiveram eles tantas propriedades na região, nomeadamente a igreja de Alhões? Sabemos pouco sobre esta deslocação, mas é possível que se relacione com o auxílio a Afonso Henriques na conquista e cristianização do novo território português (2). Tendo encontrado em Paiva, um antigo eremitério (residência de homens solitários dedicados à meditação e à oração), os premonstratenses ali implantaram uma casa daquela ordem.
A Ordem Premonstratense portuguesa tratou de conseguir reunir um capital suficiente para a subsistência da sua comunidade, investindo na compra, troca e em procurar junto de nobres doações no território em redor da sua casa. Deve-se-lhe, a fixação humana e o arroteamento de terras incultas na cabeceira do vale do Bestança, junto à qual se situa Alhões. Quase em frente, na margem esquerda existia no século XIII o lugar de Moimenta que era também dos monges da Ermida os mesmo que, não muito longe do dito lugar, fundariam a Granja, isto é, a quinta (do francês granje), aproveitando a fertilidade e a qualidade aquífera dos solos da região.
É possível que caiba aos premonstratenses a edificação da igreja de Alhões, assim obtendo o padroado dela, isto é o direito de apresentar pároco e de receber os dízimos cobrados aos paroquianos. A escolha do lugar para implantação do templo (com orientação canónica, cabeceira a nascente e fachada a nascente) demonstra o cuidado em protegê-lo dos ventos nórdicos e do tal clima áspero de que se fala em 1747. Edificada entre grandes rochedos, quase envolvida por eles, ainda hoje marca pela sua curiosa implantação, só assinalada na paisagem pela esguia sineira. Esta construção corresponde, porém, a obras de 1955. No século XVIII a igreja seria pouco mais do que uma capela com três altares, como refere o cura de então.
Na Memória de 1758, assinada pelo cura Manuel Pinto ficamos a saber que, para além dos 28 fogos (5 casas novas desde a década passada), havia 114 pessoas (3). E outras novidades: na igreja, um altar dedicado a Santa Catarina e que o cura já não era apresentado pela Comenda da Ermida, mas pela Mitra, isto é, pelo Bispo de Lamego. O que poderá ter ocasionado esta mudança? No século XVIII o Mosteiro da Ermida já não existia, mas sobre ele fora fundada uma Comenda para a qual passaram todos os rendimentos e propriedades da extinta casa premonstratense. Como as Comendas eram benefícios particulares, isto é, geridos por um leigo que dela obtinha vários rendimentos, é possível que, numa política de resgate dos padroados laicos para a Igreja, o Bispo de Lamego tenha conseguido capturar a igreja de Alhões para o seu domínio.
O cura Manuel Pinto é muito sucinto nas suas respostas. À maioria responde negativamente, mas sobre a serra, que chama de Alhões, e o rio, Bestança, é mais desenvolto nas respostas que dá. Sobre a serra diz que que começava no Perneval e terminava no Campo de Dela. Na verdade, é a visão que tem de Alhões que, em arco, lhe dá os limites dos cumes de parte do que hoje chamamos serra de Montemuro. Refere um fenómeno religioso que estaria a acontecer ao tempo da memória, e que era o do nascimento de um nicho dedicado ao Senhor do Amparo onde, escreve ele, principiava gente a correr de romagem. Mas o que chama nicho o cura de Alhões, descreve o Abade da vizinha freguesia de Ester como uma capelinha que albergava uma cruz pintada com a imagem de Cristo que fazia muitos milagres. Esta converteu-se na ermida que hoje existe (a cruz desapareceu), protegida por grossas paredes de alvenaria, dos rigores do inverno.
Sobre o Bestança diz nascer no sítio das portas de Montemuro, secar no verão e ser de curso arrebatado em algumas partes. Dá-lhe duas pontes de pau, numa no sítio da Ponte Velha e outra no de Ana Loba.
Curiosamente o cura de Alhões na resposta ao ser terra murada (isto é, com muralhas ou castelo), nada diz a respeito dos famosos muros no cimo da sua serra de Alhões.
Mas, afinal, de onde vem o nome Alhões? Um linguista chamado José Pedro Machado (4) foi o primeiro a tentar uma explicação para o topónimo, dizendo-o aumentativo de alho e plural de alhão, mas como notou, e bem, o historiador medievalista A. de Almeida Fernandes: «o que seria um “alhão”, verdadeiramente, para originar e manter um topónimo?» (5) De facto, porque havia de distinguir-se um lugar por nele nascerem…alhos com dimensões desproporcionais? Almeida Fernandes alvitra a origem germânica do nome, de Alionis, dizendo-a villa (ou unidade agrária, quinta) de um certo Alion, do gótico alja, que quereria significar, segundo o mesmo autor, peregrino. É uma explicação, quanto a nós, algo complexa e pouco convincente. Dada a aspereza do lugar, recuar o povoamento deste sítio ao tempo suevo ou visigótico (séculos VI-VIII) é arriscado, sem qualquer evidência arqueológica.
O patrono de Alhões, São Pelágio, e a próxima aldeia de Faifa podem fornecer-nos pistas para uma teoria, que consideramos mais plausível: a existência de comunidades moçarábicas que podem, inclusive, ter contribuído para a edificação da suposta muralha das Portas, se esta constituir, como querem alguns autores, o vestígio de uma estrutura defensiva. São elementos conjecturais mas que relacionados criam uma circunstância possível.
Faifa é um topónimo de origem arábica que quer dizer serra ou lugar elevado, o que se coaduna com a implantação da aldeia actual, a uma cota de 880 metros de altitude. A evolução do topónimo é bastante regular: Alhones (séc. XII) > Aloes (1258) > Alhos (1527) > Alhoens (1747-1758) > Alhões. E a excepcionalidade do topónimo (não existem outras localidades em Portugal com o mesmo nome), leva-nos a considerar que podemos estar em face de uma designação específica para um lugar específico. O sufixo Al- em Alhões tão presente em palavras de origem arábica, poderá testemunhar a memória da passagem destas comunidades. E a escolha do orago não parece alheia à presença de moçárabes, isto é, cristãos, sob o domínio muçulmano.
Os muçulmanos entraram na Península Ibérica, através do norte de África, em 711 e a sua permanência durou até 1492, com a expulsão dos mouros de Granada, pelos Reis Católicos. Contudo, a sua estadia não deixou os mesmos vestígios que a maior civilização antes deles, os Romanos. Mesmo os Suevos e Visigóticos aproveitaram as ruínas clássicas para, sobre elas, erigirem novos templos, cidades, palácios. É possível que os muçulmanos, acossados pelos cristãos que se refugiaram nas Astúrias, não tivessem tempo para grandes legados materiais e estruturais fora dos grandes centros urbanos já existentes. Mas nem por isso, sob o seu domínio, a vida deixou de correr, como teria acontecido neste vale do Bestança, rico em água, pastagens e lugares aráveis.
A história de São Pelágio (e não Plágio, como por vezes se escreve), Pelaio ou São Paio de Córdova é a de um soldado, rapaz cristão, da Galiza, que uma vez capturado pelas tropas muçulmanas foi levado a Abderramão III, emir de Córdova. Tendo resistido à sedução do líder árabe, o Emir fê-lo martirizar terminando por mandar lançá-lo ao rio Guadalquivir. Esta história, provavelmente apócrifa, a ter acontecido no século X, é um testemunho do ódio e propaganda entre partes: o cristão aprisionado, morto pela glória de Cristo e, do outro lado, a vingança da morte do cristão resoluto pelo martírio. O culto a São Pelágio ou Paio é extremamente comum a sul do Douro, nomeadamente no território do actual município de Cinfães, como em São Cristóvão de Nogueira (Sampaio), geralmente associado a vias de penetração ou pontos estratégicos defensivos no sentido sul-norte. Pelo ano 1000 o Douro foi uma fronteira entre Cristãos (a norte) e Muçulmanos (a Sul).
Pode ser que, neste contexto, se compreenda a existência da muralha das Portas, como um ponto de vigilância (e não de habitação ou de permanência pelas qualidades pouco apetecíveis do lugar), talvez edificado à pressa para conter o avanço cristão que vinha do Norte. Aliás, do sítio das Portas e, mais concretamente, do centro da cerca, é possível vislumbrar-se uma vasta região entre os topos do Marão e Alvão até aos cumes do Barroso.
Mas, embora todos os historiadores tenham sido unânimes em considerar a muralha ou o muro das Portas um lugar de defesa, sendo conhecida a qualidade da região para a criação de pecuária e, em particular, como sítio de pastagem aos gados transumantes não podemos deixar de pensar na construção de estruturas muradas para contenção das reses, a sua reorganização ou até a divisão da serra em lugares de maninho ou pastagem. Canadas e malhadas são topónimos comuns na região que referem formas de encaminhamento e contenção dos gados em determinados espaços. Embora alguns autores aludissem a uma certa ideia de comunitarismo (quase comunismo) na organização das terras serranas, o facto é que por todo o Montemuro vemos estruturas murárias que reflectem a permanência de uma paisagem pastoril.
Não descartamos, todavia, a diferença entre os incontáveis dos muros que desenham polígonos pela serra com os panos de muralha das Portas em troços ainda bem visíveis e que apresentam uma largura de quase 2 metros, sinal de edificado robusto que, mais do conter algo no seu interior, parece querer afastar algo do exterior. Todavia, não deixamos de chamar a atenção para o tipo de aparelho, em alvenaria solta e aproveitamento rochedo e afloramentos graníticos, ou seja, um tipo de construção pensada em função da falta de tempo e de recursos… Infelizmente, o desinvestimento na arqueologia neste espaço tem deixado muitas dúvidas e lacunas quanto à história e função do lugar.
Voltando a Alhões, importa referir que em 1258, metade do lugar era de foreiros ao Rei e a outra ao ermitágio de D. Roberto (6). D. Roberto seria um dos primeiros monges premonstratenses a instalar-se na Paiva e daí adveio o nome da primeira comunidade monástica. No documento as testemunhas referem que o lugar fora povoado por D. Roberto e Mendo Moniz (irmão do famoso Egas, dito o Aio), que juntamente com sua mulher D. Cristina, deram carta de foro aos habitantes (e estes a haviam perdido…). Havia aí lugar a pagamento de vários tributos, nomeadamente o da portagem, sinal de que passava importante via pelo lugar. O casal Mendo Moniz e Cristina é responsável pelo povoamento ou repovoamento de várias villas no Montemuro, numa tentativa de criar benefícios através da fixação de foreiros.
No Foral de Ferreiros de Tendais voltamos a encontrar esta divisão entre o rei e o mosteiro da Ermida, sendo 11 casais que pagavam vários bens (centeio, porco, galinha, ovos, linho e carneiro, etc.), a ambos os senhores (7).
Para além dos arqueólogos, por causa da vizinha muralha, Alhões mereceu a atenção de etnólogos que viram resquícios de sociedades antigas nos seus usos a costumes, nomeadamente nas construções «primitivas» (8) objectos do quotidiano (9) e do famoso gado da vigia (10) que congregava as todas as reses da aldeia numa forma de pastagem comunitária em que cada pastor dava o seu tempo em função do número de cabeças. Ainda antes de Amorim Girão (11) ou de Orlando Ribeiro (ver nota 9), a primeira referência escrita que conhecemos ao gado da vigia de Alhões, é de 1908, pela mão de António Arroio (12).
Freguesia até 2013, com 11, 47 km2, hoje Alhões integra a União de Freguesias de Alhões, Bustelo, Gralheira e Ramires, não tendo perdido, ainda a qualidade de paróquia, não obstante a sangria demográfica dos últimos 100 anos.
NOTAS
(1) CARDOSO, Luiz, padre – Diccionario geografico […]. Lisboa: na Regia Officina Sylviana, e da Academia Real, 1747, vol. I, p. 347. Jã o havíamos publicado aqui. https://historiadecinfaes.pt/2016/09/20/alhoes-em-1747/
(2) BOTELHO, Maria Leonor; RESENDE, Nuno; ROSAS, Lúcia – «Ermida do Paiva: reflexões e problemáticas» – Revista da Faculdade de Letras – Ciências e Técnicas do Património [Em linha]. Vol: 12, nº (2013), p. 245-262. ISSN: 1645-4936
(3) Publicada em CAPELA, José Viriato; MATOS, Henrique, leitura, org., notas – As freguesias do Distrito de Viseu nas Memórias Paroquiais de 1758. Braga: [s.e.], 2010, pp.
(4) MACHADO, José Pedro – Dicionário onomástico etimológico da língua portuguesa. Lisboa: Confluência, 1984.
(5) FERNANDES, A. de Almeida – Toponímia portuguesa. [s.l.]: Associação para a Defesa da Cultura Arouquense, 1999, p. 36.
(6) BAIÃO, António, org. – Portvgaliae monvmenta historica […]: Inquisitiones [vol. I, parte II, fascículo VII]. Lisboa: [s.e.], 1936, p. 983.
(7) MARQUES, Maria Alegria; RESENDE, Nuno – Terras e gentes: os forais manuelinos do actual concelho de Cinfães. [s.l.]: Câmara Municipal de Cinfães, 2013. ISBN: 978-989-98362-0-4.
(8) OLIVEIRA, Ernesto Veiga; GALHANO, Fernando; PEREIRA, Benjanim – Construções primitivas em Portugal. Lisboa : D. Quixote, 1988, p. 380 (sobre a forma de colmar as casas).
(9) ROCHA PEIXOTO; GONÇALVES, Flávio, org., pref., bib., notas – Etnografia portuguesa: obra etnográfica completa. Lisboa: Dom Quixote, 1995, p. 256 (sobre a patifa, um recipiente de uso local).
(10) RIBEIRO, Orlando- «Montanhas Pastoris de Portugal: tentativa de representação cartográfica». In RIBEIRO, Orlando- Opúsculos Geográficos. IV volume: o Mundo Rural. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991. Vol. 4, pp. 257-281.
(11) GIRÃO, Amorim – Montemuro: a mais desconhecida serra de Portugal. Coimbra: Coimbra Editora, Lda., 1940.
(12) ARROIO, António – Notas sobre Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional, 1908, vol. 1, p. 79.
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Ex.º: RESENDE, Nuno – «Giraldo Geraldes, o sem pavor». História de Cinfães, https://historiadecinfaes.pt/, consultado em linha em 17-10-2009.
Professor. Universidade do Porto. Portugal.