O livro «Relações e confidências das Expedições de Serpa Pinto. Estudo e antologia da Correspondência relativa às Campanhas de África (1876-1890)», de Tomás Pinto Bravo foi editado recentemente (2023) pela Imprensa Nacional Casa da Moeda, na sua colecção «Temas Portuguesas».
A obra, de 496 páginas, estrutura-se em duas partes, uma intitulada «Alexandre Alberto da Rocha de Serpa Pinto (1846-1900): elementos para a sua biografia» e, outra, denominada «Antologia documental». Apresenta, ainda, um índice da documentação publicada e, em apêndices, uma «iconografia», uma «cronologia» e índice onomástico. No final, as «Fontes e Bibliografia».
Após uma listagem de abreviaturas (que são, afinal, siglas) o autor apresenta «palavras de agradecimento» e abre o seu trabalho com uma justificação. Nesta fundamenta o seu labor, com uma síntese: «os laços de conterraneidade que unem o autor destas linhas ao autor do das cartas que se publicam». Após uma lista de citações literárias sobre Serpa Pinto, Tomás Pinto Bravo escreve: «não é nosso mister trilhar o que há de real ou irreal na prosa de Serpa Pinto, ou cotejar factos narrados com factos historicamente comprováveis, mas somente dar o contributo para a valorização da produção deste autor, por sua vez possuidor de um valor literário não inferior ao da obra publicada em vida».
Este excerto é importante para compreender pertinências e incongruências do trabalho que se publica. Por um lado, a edição de epistolografia, que Pinto Bravo se preocupa em enquadrar nas páginas seguintes, é sempre importante para escrever História. Contudo, o autor enfatiza o valor literário da escrita de Serpa Pinto que, parece-nos seja devido avaliar por profissionais da literatura e não por um historiador. Para um historiador, a carta deve ser tomada como um documento, independentemente dos seus valores formais ou artísticos, ou ainda da qualidade estilística da escrita. De resto, não encontramos em qualquer parte deste livro um verdadeiro trabalho de avaliação (da qualidade) da escrita, que poderia integrar um capítulo de reflexão sobre a fonte – o que, de resto, não existe.
Ainda na justificação o autor define – e em parte explica – a organização do seu trabalho, tomado as expedições «de» Serpa Pinto. Não apresenta, contudo, qualquer exercício de enquadramento sobre a preparação, realização e impacto de tais expedições. Como e quando foram organizadas, em que contexto político e científico e como foram recepcionadas? Poderá invocar-se ser desnecessário tal indicação, mas a aplicação de conceitos como «expedição» exige um labor descritivo e interpretativo dos mesmos cuja inexistência salta à vista.
Nota-se ausência de um capítulo que apresente a metodologia de transcrição das cartas. Qualquer trabalho de transcrição paleográfica exige que se explique, de uma forma organizada e clara, os critérios de transcrição, seguidas de um aparato crítico que não foi cumprido. As cartas são apenas transcritas sequencialmente, por ordem cronológica. Não são discriminados os critérios a que a transcrição obedeceu, sendo que fica ao cuidado do leitor deduzi-los do texto, o que implica um confronto com o original. Deduz-se que as abreviaturas não são desdobradas, porém nada é escrito sobre pontuação e ortografia – se houve ou não interferência do autor no texto.
Também a indicação das fontes não segue regras codicológicas (localidade, biblioteca/arquivo, fundo/coleção, manuscrito, fólio). Não sabemos se o texto apresenta emendas, apontamentos marginais, sobescritos. Nem sequer os diversos arquivos, fundos e suportes da informação são submetidos a qualquer apresentação crítica. Apenas em nota de rodapé são, ocasionalmente referidas, falhas na sequencialidade da documentação, nomeadamente quanto à inexistência das fontes primárias – o que nos leva a apontar novamente a ausência um ponto ou capítulo em que abordem estas problemáticas.
No nosso contacto com uma parte das cartas nesta obra que, em 2010, transcrevemos no Arquivo da Sociedade de Geografia de Lisboa, reparamos que a escrita de Serpa Pinto era irregular. Apresentava, aqui e ali, erros ortográficos e expressões gramaticalmente incorrectas, o que pode dever-se às circunstâncias da escrita, ou à sua formação – questões que importava abordar numa obra como a que ora apresenta Pinto Bravo. Ao compararmos algumas das transcrições que então fizemos, com as cartas agora publicadas, damos contas de más leituras e emendas do autor ao texto original! Num trabalho académico tal é inaceitável. Dois exemplos, apenas: na página 97 está «mandadas», mas na carta original escreve-se «mendadas»; escreve Filhon, e é, na verdade, Fillon, p.99, etc.
No conjunto de cartas depositadas na Sociedade de Geografia de Lisboa há um aviso do seu ofertante, Gago Coutinho o qual, consciente do teor das informações veiculadas (algumas pondo em causa a honra do herói) recomenda que tais cartas nunca fossem publicadas. Não há, em todo o trabalho, alguma referência a esta entidade custodiante, nomeadamente quanto à autorização tácita dos responsáveis da mesma relativamente à publicação destas cartas.
A parte dedicada à biografia de Serpa Pinto continua a perpetuar alguns dos mitos criados em torno do explorador, mitos essencialmente gizados durante o Estado Novo. As ideias de intrépido explorador, corajoso militar, caem pelo confronto ou cotejo, para utilizar uma expressão de Pinto Bravo, com outras fontes da época – que o autor não quis fazer. Mas apenas através da leitura e interpretação das cartas publicadas temos abundante material para colocar em causa este herói.
Percebe-se, contudo, que quer na justificação, quer na parte biográfica, Tomás Pinto Bravo, não deseja questionar a figura, tão-somente continuar a perpetuar ideias nacionalistas que, aliás, explicam o obscurecimento da figura no período a seguir a 1974. Um vazio de quase duas décadas em que pouco ou nada se escreveu sobre Serpa Pinto, apesar da abundante toponimização do país com os seus apelidos (ocorrida a seguir ao Ultimatum e entre 1933-1974). A maioria dos seus principais biógrafos (nomeadamente a sua filha) viveu durante o Estado Novo, contribuindo para construir a ideia que perpassa nesta obra, escrita em bom e claro português, mas prejudicada por constantes referências laudatórias e apologéticas, pouco recomendadas à prática historiográfica contemporânea.
Finalmente, e terminadas estas apreciações, o título do livro não corresponde ao principal objectivo da obra. Não estamos perante uma antologia em strictō sēnsū, pois o autor não escolhe entre um corpus já publicado, cartas com que construa uma referência às campanhas de África. A sua tentativa de publicar o maior número de documentos epistolográficos mereceria não o título de antologia, mas o de colecção ou o de compilação. Temos dúvidas, também, quanto às palavras «relações» e «confidências» – a existirem, nas cartas, o autor as não apresenta deixando para o leitor o trabalho de as encontrar. Supomos que tenha sido um truque editorial para aumentar a estimular a venda da obra. A este propósito, lamentamos que a INCM não faça uma criteriosa revisão das obras que entende publicar sob a sua chancela, evitando alguns dos erros aqui elencados.
Edição escorreita e asseada, vale pela contribuição de coligir documentos epistolográficos sobre um período particularmente importante a nível diplomático, no qual Serpa Pinto participou e cujos atos ajudaram a conduzir. Contudo, a excessiva personalização e idolatria da figura e do seu tempo têm deturpado, quer os estudos biográficos, quer a leitura das cartas que agora se publicam, até os (abusivos) títulos acrescentados por Pinto Bravo, nos conduzem a um enviesamento romântico e literário dos documentos.
Mais uma vez perdeu-se a oportunidade para discutir o tom colonialista da obra de Serpa Pinto, que os tempos já não justificam.
Impõe-se, aliás, e cada vez mais, utilizar a História, para o que serve socialmente, coligir e criticar, discutir e interpretar. Uma História apologética, saudosista, só beneficia um doloroso prolongamento, no tempo, de práticas e visões pouco saudáveis.
Professor. Universidade do Porto. Portugal.