Lavradores e marinheiros!

Comendador Victorino Vaz Pinto do Amaral (de Fundoais)

O tratamento arquivístico dos pedidos de passaportes a partir do Governo Civil de Viseu, disponibilizados em linha pelo Arquivo Distrital e indexados pelo GenealogiaFB permitiu-nos desenhar um perfil do emigrante de Cinfães entre 1864 e 1890 [1].
Este período corresponde, grosso modo, ao da definição da nova circunscrição administrativa que ainda hoje perdura: o município de Cinfães, composto por 17 freguesias (13 depois da reorganização de 2013), entre os cursos de água do Paiva, a sul e poente, Douro a norte e Cabrum a nascente. A sede deste novíssimo concelho (pois haviam existido dois concelhos com a mesma designação mas com áreas diversas) instalou-se num pequeno lugar, sensivelmente a meio deste território de quase 240 quilómetros quadrados. A nova malha viária, outrora organizada para servir os lugares mais importantes dos extintos municípios de Ferreiros de Tendais, Tendais, São Cristóvão de Nogueira e Sanfins, teve de ser pensada a partir da nova vila de Cinfães.
O século XIX constituiu, em Portugal,  tempo de grande convulsão política, social e económica. Ainda que, a partir do Fontismo (1860-1880), o país tenha conhecido um progressivo desenvolvimento ao nível de infraestruturas e serviços, o desgaste provocado pelo Rotativismo, as constantes reformas políticas de avanços e recuos e uma incapacidade para atrair desenvolvimento industrial, deixaram o Reino de Portugal com vários problemas, um deles, se não o mais grave, o da emigração.
O Brasil, pelas potencialidades económicas que desenvolveu em termo de exportação de matérias-primas e produtos, como o café ou a borracha e, também, pelo crescimento exponencial dos seus centros urbanos necessitava de mão de obra, alguma especializada, mas a maioria sem qualificação – força braçal, apenas.
Em Cinfães, território agrícola, dividido entre rendeiros e senhores, com uma propriedade minifundiária, sem industrialização e profundamente dependente de uma estrutura viária deficiente, viu a sua população activa diminuir mercê do fenómeno da emigração. Este fenómeno numa se esgotou até aos dias de hoje, entre emigração para o estrangeiro e migração para os centros urbanos do litoral português. Em meados do século XX, um monógrafo de Travanca, chamado Abílio Brochado, escreveu: «pena é que a nossa tradicional corrente de emigração de novo esteja a fazer carreira, desfalcando o país, como acontece em Travanca, com a saída de muitos dos seus filhos, que o trocam pelo estrangeiro, especialmente pelo Brasil, uns levados pelo seu espírito de aventura, outros pelas dura dificuldades da sua vida presente, que é muito mais lamentável ainda» [2].
Pelos dados levantados neste período (1864-1890), a que se referem a pedidos de passaporte para embarque a maioria (2230) partia para o Brasil [3]. Dentro do Império do Brasil, destacam-se os destinos de Rio de Janeiro (1127), Rio Grande do Sul (57) e Pará (21). Serão estes, contudo, os portos com a maior afluência de emigrantes a partir dos quais seguiriam outros destinos.
Esta era uma decisão essencialmente masculina. Dos 2233 pedidos, 2172 são de homens e apenas 61 de mulheres. São os casados que lideram o número de pedidos, 793, seguidos dos solteiros, 599, e de viúvos, 38. Alguns fazem-se acompanhar pelos filhos, outros, pressentimos pelos apelidos, circulariam com as mulheres e outros parentes.
A média de idade para a emigração, em Cinfães, naquele período é de 29,8 anos – com variações por freguesia. De facto, entre as 17 freguesias de Cinfães há diferenças, algumas notáveis, no perfil dos emigrantes. Naturalmente que a localização geográfica, os recursos da terra e até a densidade populacional poderiam influir nesta diversidade.
Para o período em estudo, existem três processos de recenseamento que utilizamos na aferição das percentagens da emigração em cada freguesia: os censos de 1864, 1878 e 1890. A partir do número de habitantes de cada freguesia calculámos a média destes entre as três datas e, com este número, aferimos a percentagem de pedidos de passaporte. As freguesias com a maior percentagem de pedidos foram: São Cristóvão de Nogueira (16%), Souselo (14%), seguidas de Tarouquela e Ferreiros de Tendais (11%) e Cinfães e Espadanedo (10%). A freguesia com a menor percentagem de pedidos foi a Gralheira (2%).
Embora a maior parte dos pedidos não indique a profissão do emigrante (1750), temos informação sobre 483 ofícios ou ocupações. No topo da lista está o de lavrador (242), seguido do de marinheiro (43). Curioso este binómio que serve bem para caracterizar o município de Cinfães no século XIX, ainda dependente da terra e do rio. Seguem-se trabalhadores, que poderíamos juntar aos jornaleiros (37), os carpinteiros e os pedreiros, estes do mundo do oficialato mecânico. Há ainda proprietários, negociantes, sacerdotes e estudantes em viagem, não sabemos se a procurar novas oportunidades, se a tratar dos seus negócios.
Alguns ofícios prendem-se a determinadas geografias, como os de marinheiro e arrais que se dizem naturais de São Cristóvão de Nogueira (17), Souselo (16), Espadanedo (4), Oliveira do Douro (3) e Cinfães (3). Será que a paulatina substituição do transporte fluvial pelas estradas e pelo caminho de ferro, deixou os marinheiros e arrais sem ocupação? É possível.
Outros ofícios parecem circunscrever-se a certas localidades. Do Couto de Souselo temos referência a 6 almocreves, em São Cristóvão de Nogueira e Tendais, destaca-se o número de carpinteiros (respectivamente 7 e 5). Também em Souselo, os Pintos e Mouriscos de Balteiro destacavam-se como oficiais de pedreiro.
O perfil do emigrante cinfanense entre 1854 e 1890 é, pois, o de um homem casado, por volta dos 30 anos de idade, dependente do trabalho agrícola, que parte em busca de uma vida melhor para si e para a sua família. A distribuição da emigração por freguesias também ajudará a desenhar uma paisagem eventualmente marcada por referências trazidas por estes viajantes, dando expressão (ou não) à ideia dos torna-viagens, abundamente glosada pela literatura oitocentista.
Mas, neste universo de números e estatística não conseguimos entrever razões pessoas, individuais e íntimas para tal decisão. É certo que alguns nomes nos pedidos de passaporte deste período nos são conhecidos, ou por terem regressado abonados de bens ou por, do Brasil, terem continuado a acalentar o amor pela terra através da filantropia. Conhecemos os exemplos do comendador Vitorino Vaz Pinto do Amaral (na foto) que emigrou para o Brasil em 1871 e veio morrer à sua terra, Fundoais, em 1926 e o de António Pereira Gonçalves de Andrade, brasileiro de torna-viagem que mandou construir, às suas custas, a primeira escola da sua terra, Vila de Mures em Tendais. Ele e o irmão enriqueceram pela emigração, criando um império fabril em Lisboa. Também desta freguesia, José Rodrigues da Silva Barroca (1792-1846), foi um emigrante enriquecido que deixou um legado para ajudar outros emigrantes da sua terra a viajar para o Brasil.
Razões mais prosaicas, as de Francisco Gonçalves Magalhães que, «cheio de esfolar fragas», embarcou para o Brasil e anos depois, em 1912, chamou mulher e filhos para a sua companhia.
Cada nome é uma história, que temos tentado conhecer entre os frios números dos pedidos de passaporte ou de embarque, algumas das quais nos têm chegado através do projecto Rostos da Emigração, disponibilizado através da plataforma Facebook do História de Cinfães.

 

Notas

[1] – fizemos uma revisão dos nomes, eliminando duplicações da base de dados e corrigimos/colmatámos informações erradas ou em falta, devidas a más transcrições paleográficas.

[2] – BROCHADO, Abílio da costa – A freguesia de Travanca do concelho de Cinfães. Apontamentos para a sua História. Porto: Junta de Província do Douro Litoral, 1955-1956.

[3] – Há dois pedidos de passaporte para Luanda e um para Montevideu.

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Professor. Universidade do Porto. Portugal.

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