CARTOGRAFIA DO PATRIMÓNIO INTELECTUAL DE CINFÃES

Nasci, em Cinfães, em 1978. Faço parte de uma das últimas gerações de crianças, homens e mulheres, que nasceram no Hospital local, o da Misericórdia. A partir da década de 1980 os filhos de cinfanenses, antes nascidos em casa, começaram a nascer em Viseu, no Porto, ou em Penafiel, nos hospitais distritais ou regionais.
Apesar de ter vindo para a cidade do Porto aos 2 anos de idade, nunca senti necessidade para esconder a minha naturalidade apesar de, durante a infância, e pelo contacto com a minha família cinfanense, ir mantendo um certo sotaque que predisponha à entoação de determinadas palavras. Os meus colegas notavam e, como qualquer criança, faziam troça do palavreado.
Esta circunstância nunca me entristeceu, bem pelo contrário, sempre tive orgulho nos sotaques que fui adquirindo e do léxico vernacular que me enriqueceu pelos sítios por onde passei, em estudo ou trabalho.
Foi apenas quando cresci que me dei conta de outros tipos de discriminação em relação à minha origem, umas mais directas ou mais insidiosas.
Cinfães é um concelho rural, relativamente recente (tem pouco mais de 120 anos), sem grande edificado histórico ou elementos paisagísticos que ajudem à criação de uma identidade gráfica. Ou mesmo de uma identidade. Quando foi criado, em 1855, a partir da aglomeração de vários municípios antigos, como Sanfins da Beira e Ferreiros de Tendais, tentou definir-se, a partir desta manta de retalhos, algo que lhe conferisse unidade.
A verdade é que o pequeno lugarejo de Cinfães, para além da igreja, de uma casa senhorial e de um pequeno aglomerado de casas, nada mais era em 1855 do que uma aldeia com ruas de terra batida e empedrado rude. Quando a vila foi obrigada a crescer no sentido dos Outeirinhos, abriu-se uma artéria que ainda hoje constitui a espinhal dorsal de um urbanismo errático.
O nome Cinfães evoca para quem o não conhece, um certo arcaísmo, que serve para jogos fonéticos de sotaque: «És de Xinfães? De Xinfães do Douro?» perguntavam-me às vezes. Dupla graçola, a do sotaque e e da designação «Douro» que, aliás, não faz sentido, pois só existe uma localidade denominada Cinfães – confundida com as várias Sanfins que existem em Paços de Ferreira, Alijó e Santiago de Piães  – exagero no sotaque com “X” só servia para rebaixar a origem, de gente vulgar, rural.
Ao longo do século XX e, sobretudo, durante o Estado Novo (1933-1974) quando se criou a Junta de Província do Douro Litoral, tentou-se separar e promover as «especificidades locais» dos vários concelhos desta província, através do artesanato, do folclore e da musicologia – especificidades artificiais, já se vê. O trabalho de Vergílio Pereira, ao nível dos Cancioneiros concelhios serviu exactamente para consubstanciar a ideia municipalista e regionalista do Estado Novo do bairrismo, do paroquial e do aldeão. Não é necessário ser-se musicólogo para perceber que a música não se confina a barreiras geográficas. A música circula com os indivíduos e a sua fluidez não respeita limites físicos.
O folclore foi uma das apostas do regime: fomentava uma (falsa) ideia de associativismo quando as associações que não se enquadrassem na ideia corporativista eram proibidas; estimulava a compartimentação de tipos sociais devidamente hierarquizados e postos no seu lugar (a mulher em casa ou no campo, o homem de sachola ao ombro, etc.) ; reforçava os papéis masculinos e femininos nos trabalhos, da lavoura e da casa, propondo, ficcionalmente claro, a mistura entre pobres e ricos, numa harmonia poética mas postiça, glosada pelo verso: «na minha aldeia não há ódios, todos são primos e primas».
Curiosamente, a institucionalização deste folclore fê-la já a democracia. A maior parte das associações culturais cinfanenses voltadas para o folclorismo são já de finais das décadas de 1970 e da década de 1980. Dir-se-ia que as sementes plantadas em 48 anos de ditadura deram frutos numa grande árvore que transformou o município num imenso palco.
Estas ideias de ruralismo, folclore e, claro, da paisagem, fizeram os tópicos de promoção turística ao longo de todo o século XX. Monumentos, poucos, e os existentes apelando à rusticidade do lugar.
Uma das discriminações que me causou e causa ainda mais impressão é a que associa Cinfães às ideias de pobreza, isolamento, do pitoresco. A pobreza não é necessariamente material, mas intelectual. Em frente, Baião tomou Eça de Queirós para si; não muito longe, entre o Marco de Canaveses, Amarante e Penafiel há um território com mais génios por metros quadrados do que qualquer lugar em Portugal: Agustina Bessa-Luís, António Nobre, Teixeira de Pascoaes, Amadeo de Souza Cardoso, António Carneiro etc.
Se perguntarmos a alguém o que sabe sobre Cinfães, talvez lhe responderá pouco (uma ligação geográfica mais ou menos precisa) e certamente nada sobre alguma figura local cujo perfil intelectual ou cultural tenha contribuído para a projecção da língua, da ciência, do país.
A frequente colagem de Serpa Pinto a Cinfães, representante de um tempo e de um pensamento coloniais, autor de um feito egocêntrico (o título do seu livro foi «Como EU atravessei África» e isso apesar de ter começado a travessia com dois camaradas), não é de, modo algum, uma figura intelectual e consensual. O que trouxe ao país? a defesa do Império Ultramarino, das Colónias, que hoje já não existem e sequer faz sentido reavivar.
E, no entanto, houve outros indivíduos, homens e mulheres, em Cinfães, de uma craveira intelectual extraordinária, nunca inferiores aos do seu tempo e mesmo aos de além dele.
Se Cinfães fosse uma marca, seria difícil vendê-la. A paisagem não se distingue muito dos concelhos vizinhos de Resende e Castelo de Paiva, que aliás o turismo reduz ad nauseam aos tópicos serra e rio. De monumentos, à parte as igrejas, que não na sua maioria comuns, só a arqueologia poderia eventualmente relevar, como fez noutros sítios, lugares com notável interesse cronológico – desde o Castro de São Paio (em São Cristóvão de Nogueira) à Muralha das Portas, esta à espera de uma conservação e projecção educativas e turística.
Tudo o resto é pequenino, pouco ambicioso e excessivamente bairrista. O bairrismo é uma doença das pessoas que não viajam, que não leem, que não veem além dos seus muros, onde o torrão que pisam é sempre o mais viçoso do que o do vizinho.
Por isso, a pior discriminação com que geralmente me vejo a par quando digo que sou de Cinfães, é a do desconhecimento do valor intelectual das suas gentes – o rebaixamento tendencioso que não é de hoje (veja-se Camilo Castelo Branco que utilizou várias personagens de Cinfães para exemplificar o indivíduo bruto, farsante, oportunista) que utiliza o cinfanense como sinónimo de ignorância, força bruta, esterilidade. Não há em Cinfães só lavradores, nem artesãos, com todo o respeito que devemos ter por quem trabalha a terra e os materiais. Há e houve homens e mulheres que deixaram uma obra literária, científica, artística e filantrópica.
Estes foram os eixos que desenvolvemos para cartografar os cérebros cinfanenses. Aqueles que têm levado para além dos limites mesquinhos do bairrismo o seu nome e o das suas origens que é, afinal de contas, a Cultura. Muitos escritores começaram a escrever o que viam da sua janela. Outros aguçou-lhes o espírito científico as pedras ou as estrelas que cresceram a observar.
CARTOGRAFIA DO PATRIMÓNIO INTELECTUAL DE CINFÃES começa com a distribuição de indivíduos que, pela sua produção, obra, criação ou contributo para Cinfães ou a partir deste município deixaram e deixam um legado. Em breve abriremos outras categorias, nomeadamente no âmbito da música. Às quatro categorias definidas juntaremos, em breve, excertos de obras literárias, fotografia, pintura e outros elementos visuais, relacionados com o território cinfanense. E partiremos, também, para a criação de pequenos itinerários temáticos para quem se interessar por olhar com mais atenção para os lugares.
Para ver não é preciso subir a miradouros ou monstros metálicos de que Cinfães se está a tornar uma espécie de «capital».
Para ver, basta abrir os olhos.

NUNO RESENDE

N.B. Muito agradecemos a contribuição de Ercílio Galhardo na indicação de cinfanenses de Nespereira com relevante actividade cultural e filantrópica.

About the author

Professor. Universidade do Porto. Portugal.

Comments

  1. Muito obrigada. Tenho 70 anos mas com +- 14 anos calcorreei uma vez e várias a cavalo para acompanhar meu pai Romeu Barbedo e outros desde as Pias à caça pelos caminhos e aldeias evocadas. A foto chamou-me à atenção pq tenho uma também. A verdade da escrita fez-me comover e sorrir pela lembrança . Muito obrigada.

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