Quem já percorreu a estrada municipal 1027, no sentido de Covelas encontra, a 2,5 quilómetros depois de ter saído da E.N. número 222, uma lápide com a indicação Quinta de Matelos / Rua D. Luís Noronha Távora (ilustração 1). Quem foi este senhor? E porque existe, ali, uma rua com o seu nome?
A história por detrás desta lápide é repleta de notas curiosas que não se resumem ao lugar, quase esquecido na margem direita da ribeira da Bestança (clique para ver localização).
Comecemos pela quinta de Matelos. Este topónimo aparece no século XVII, num processo de habilitação ao lugar de Familiar de Santo Ofício requerido por Inácio do Amaral Barbosa [1 ]. O Santo Ofício, que conhecemos vulgarmente por Inquisição, tinha uma rede de denunciantes e informadores, incumbidos de vigiar as comunidades onde moravam. Cabia a estes indivíduos relatarem ao Santo Ofício, eventuais prevaricadores da moral e dos bons costumes, nomeadamente cristãos-novos que continuavam a praticar a religião judaica, entre outros casos ofensivos ao catolicismo. O acesso ao cargo exigia uma prova de sangue, devendo o pretendente ser limpo de ascendência judaica, moura, herege, etc. e apresentar bom comportamento e bens que o permitissem exercer o cargo sem serem aliciados no sentido de adulterar informações.
Inácio do Amaral Barbosa apresentou, em 1644, pretensão a Familiar do Santo Ofício. Era homem poderoso, que vivia na Índia, tendo-lhe sido concedido, em 1641, alvará de escudeiro fidalgo e cavaleiro-fidalgo, com 1$000 réis de moradia por mês e 1 alqueire de cevada por dia, pelos seus serviços que exercera em cinco armadas do Malabar, Norte e Ceilão [2 ]. O seu pai era natural do lugar de Matelos, no concelho de Ferreiros de Tendais e a mãe, de Travassos, do concelho de Cinfães.
O processo seguiu os trâmites do costume, com inquirições a várias testemunhas nas localidades de origem e moradia de pais e avós. O pai, Francisco de Bairros, vivia no lugar da Mata, mas o avô paterno de Inácio habitava no lugar de Matelos. As diligências demoraram um ano e embarraram em testemunhos contraditórios sobre a limpeza de sangue do habilitando: segundo uns era de descendente de cristãos-velhos, para outros de cristãos-novos, ou seja, judeus cristianizados. Uma das testemunhas chegou a afirmar: «Que [Francisco de Bairros, pai de Inácio] tinha fama de judeu [,] que ele tinha alguma cousa do sangue de nassão, E pela mesma fama Corre …hu filho que chamão Manuel Barbosa que mora no lugar de Matelos”» [ 3].
Inácio não obteve o cargo de Familiar de Santo Ofício e provavelmente não voltou a Ferreiros de Tendais, pelos trabalhos que levava a cabo no Oriente. Foi capitão de Mombaça (1646) e juiz da Alfândega de Diu (1646). Porém, em Mata e Matelos ficaram vários parentes e descendentes destes que continuaram a perpetuar o estigma da fama judaica que, aliás, o genealogista Miguel Pinto de Resende já abordou em artigo datado de 1988, no jornal Miradouro e nós no trabalho «Vínculos Quebrantáveis» [4 ].
Manuel Barbosa, irmão de Inácio, casou em Fundoais, com Maria Pereira e teve, entre outros, Francisco do Amaral Barbosa que, por sua vez, casou com Jerónima do Amaral e dela houve Ana Cardoso, casada com Tomé da Fonseca de cujo casal foi filha Rosa da Fonseca.
Nascida em 1720, Rosa casou com o capitão-mor de Ferreiros de Tendais Manuel Botelho, bisneto de Manuel Cardoso, o «Galo Velho», também infamado de judeu na região. Deste casamento nasceram pelo menos três filhos, o padre António José Botelho, Manuel José Botelho, que foi capitão-mor como o pai, e Maria Joaquina. Manuel José e Maria Joaquina casaram e deixaram descendência, e apesar dos votos de castidade também António José Botelho deixou descendência. Houve três filhos de duas mulheres chamadas Eugénia Maria e Rosa. Da primeira, António José Botelho e, da segunda, José Manuel Botelho e Manuel José Botelho.
Os filhos de Rosa, natural do Castelo de Fundoais, foram grandes nomes do liberalismo português, ambos formados em Direito pela Universidade de Coimbra, José Manuel deputado às Cortes na década de 1840 e Manuel José Botelho, juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça.
Casado duas vezes, a primeira no Porto, com Ana Guilhermina Rodrigues, a segunda com Maria Augusta Teixeira Vessadas, de Barcelinhos (Barcelos), Manuel José foi juiz em várias Comarcas, delegado do Procurador Régio e Comendador da Ordem Militar de Nª Srª da Conceição de Vila Viçosa.
O rei D. Luís concedeu-lhe, em 1887, o título de Visconde de Santo António de Vale Vessadas, alusivo à denominação do lugar da casa da sua segunda mulher, situada nos arredores de Barcelos [5].
Manuel José Botelho, faleceu em 1892 e está sepultado no Cemitério do Prado do Repouso, mas a nossa história não acaba aqui. Deixando, apenas, uma filha do segundo casamento, chamada Laura Botelho Teixeira do Vale Vessadas, esta viu-se no centro de um caso que deu brado nas sociedades barcelense e portuense do início do século XX, a do seu rapto por… D. Luís de Noronha e Távora, natural de Pangim (Índia), descendente dos Condes dos Arcos.
O caso é narrado num opúsculo (ilustração 2) [6] feito publicar pela mãe da raptada, Maria Augusta Teixeira Vessadas, Viscondessa de Vessadas, que descreve como estando a sua filha hospedada no Porto, na casa do Doutor José Crispiniano da Fonseca, cunhado do raptor, ambos conspiraram para levar a cabo o acto, afastando a filha Laura dos parentes, por alegadas razões de saúde. D. Luís fora casado uma primeira vez com Maria da Glória Crispiniano de Almeida, irmã do dono da casa onde se hospedava a sua futura mulher com quem, aliás, se consorciou a 5 de Julho de 1902, na igreja de Santo Ildefonso [7].
Assim se explica que, nos séculos XX e XXI, os descendentes dos Botelhos de Matelos ainda tenham propriedades neste lugar e que seja ali evocado o nome de D. Luís de Noronha e Távora, casado com uma das suas familiares.
NUNO RESENDE
NOTAS
[1] Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, Inácio, mç. 1, doc. 5.
[2] [S.A.] – Inventário dos livros de matrícula dos Moradores da Casa Real: 1641-1681. Lisboa: Imprensa Nacional, 1911, p. 177
[3] Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, Inácio, mç. 1, doc. 5 (12.ª testemunha).
[4] REZENDE, Miguel – «Cristãos-velhos e Cristãos-novos em Cinfães». Jornal Miradouro (1992). Resende, Nuno – Vínculos quebrantáveis: o morgadio de Boassas e suas relações (sécs. XVI-XVIII). Coimbra: Palimage, 2012. ISBN: 978-989-703-052-9.
[5] Zúquete, Afonso dir., coord. – Nobreza de Portugal e do Brasil. Lisboa: Edições Zairol, 2000, vol. 3, pp. 310-311. Há incorrecções neste verbete, nomeadamente a filiação do Visconde Manuel José Botelho.
[6] Vessadas, Viscondessa de – O rapto de minha filha Laura pelo Sr. D. Luiz de Távora e Noronha quando minha filha se achava gravemente enferma em casa de seu primo o Sr. Dr. José Crispiniano da Fonseca cunhado do raptor. [Barcelos]: Typographia Barcellense. Disponível em-linha: https://aqualibri.cimcavado.pt/handle/20.500.12940/14834
[7] ADP, Paroquiais, Paróquia de Santo Ildefonso, registos de casamentos, 1902, fl. 67-67 v.
Professor. Universidade do Porto. Portugal.
Muito interessante o que se passou naqueles tempos em Ruivais, Aldeia e na Freguesia de Ferreiros, ainda mais com a existência da roda (também em Piães), são factos históricos que desconhecia.
Obrigado pela partilha do conhecimento.
Apenas uma nota para assinalar um possível lapso: julgo que a localização de que fala (na EM 1027) fica na margem direita (e não na esquerda) do Bestança, que por sua vez é afluente da margem esquerda do Douro, como sabe (e provavelmente “provocou” o suposto lapso).
De resto, obrigado por mais uma publicação muito interessante sobre – entre outras coisas – a história infinita do anti-semitismo.
Cumprimentos
Muito obrigado pelo seu comentário! corrigido.