«Lisboa é cousa boa, mas a Gralheira! a Gralheira!»
Vox populi, citada por Alberto Pimentel, em Terra Prometida,
Gralheira é um topónimo que designa uma das extintas freguesias do concelho Cinfães entre 1855 e 2013. Depois da reforma administrativa promulgada neste ano a Gralheira uniu-se a Alhões, Bustelo e Ramires, numa só freguesia[1]. Todo o seu antigo termo ou área (mapa 1) implantava-se acima dos 1000 metros, atingindo o máximo de 1200. É, em Portugal, uma das cinco povoações situada a maior altitude, juntamente com Sendim (alt. 1155 m), Pitões das Júnias (1140 m), Panchorra (1120 m) e Sabugueiro (1120).
A Gralheira foi uma das aldeias mais cobiçadas pelos pensadores portugueses dos séculos XIX e XX. Cobiçada pela sua distância aos principais centros urbanos, pelo seu isolamento e o dos seus moradores que, antes da estrada e da chegada da electricidade, lhe conferia uma aura de mistério. Talvez, ainda, por se situar naquela que, em 1940, o geógrafo Amorim Girão designou de «A mais desconhecida serra de Portugal»[2] – olhar enviesado e até contraditório, se pensarmos que poucas serras como a de Montemuro têm a sorte de terem uma descrição do século XVI. Trata-se do Tratado de um rico pano de verdura[3], escrito a partir de Lamego por um mercador chamado Rui Fernandes – descrição que, embora não inclua a Gralheira, alude às gentes e sítios dessa terra áspera e estranha aos olhos de um mercador duriense quinhentista e aos dos intelectuais de oitocentos.
De facto, logo no século XIX, a Gralheira começou a despertar interesse entre as disciplinas nascentes da arqueologia e da antropologia. Resultado de uma excursão pela Beira, levada a cabo, em 1876, por Barros Gomes este publicou no Jornal de sciencias mathematicas, physicas, e naturaes um artigo sobre botânica em que destaca a «importância orográfica e regional da Serra de Montemuro»[4], referindo a Gralheira, por onde parece ter passado. É o primeiro fazê-lo, ainda antes da obra de A. Girão.
Foi, aliás, a excursão – forma de observação científica através da jornada – que levou intelectuais aos lugares então mais recônditos de Portugal, a maior parte situados nas suas montanhas. O movimento excursionista português começou pela Serra da Estrela, mas foi alastrando a outras serras como o Soajo, Arrábida, Estrela e Montemuro. Intelectuais como Leite de Vasconcelos e Rocha Peixoto, pressupunham que, nas montanhas do Norte e da Beira Alta, encontrariam comunidades cristalizadas, com os seus hábitos, indumentária e habitações inalteradas desde tempos imemoriais.
Alertado pelos irmãos Augusto e Cristóvão Pinto Brochado, da casa de Valbom de São Cristóvão de Nogueira, o arqueólogo José Leite de Vasconcelos começou a interessar-se pela Gralheira entre finais do século XIX e primeiros anos do século XX. Não sabemos se da insistência de Cristóvão Brochado demonstrada nas cartas que escreveu a Leite de Vasconcelos tenha resultado alguma visita deste à aldeia mas, nas obras que escreve, nomeadamente na Etnografia Portuguesa, reflectem-se os testemunhos do seu correspondente.
Seguiu-se lhe Rocha Peixoto que visitou a aldeia fotografando alguns dos seus homens e mulheres em poses tipológicas (imagem 1) e documentando habitações, para trabalhos sobre a «casa portuguesa». Deve-se-lhe a primeira projecção visual deste lugar, que se tornou destino fetichista para quem desejava encontrar vestígios de comunitarismo: para uns o regresso a um Passado Ideal, quase edénico, para outros a prova de sociedade proto-socialista, vivendo numa espécie de comunismo. É, aliás, interessante a alusão que este faz à organização dos gados locais: «Já os da Gralheira não teem vigias. Cada um cuida do seu gado numa parte do baldio. Mas outra grande parte é arrendada pelo povo, durante dois meses, aos pastores que veem das bandas da Estrella e adjacencias, de Nellas e Casal Sancho, de Santa Comba e de Canas de Senhorim. É a transhumancia, ultimos e eternos despojos da idade longinqua da terra vaga – “pois a principio a terra era de ninguem” (Oliveira Martins).[5]»
A «descoberta» da Gralheira no século XIX promoveu o interesse nesta aldeia perdida, de tal forma que Eça de Queirós assinala-lhe o topónimo no Crime do Padre Amaro, colocando a personagem principal a paroquiar Feirão, na «serra da Gralheira». Eça, que certamente nunca pôs os pés nem em Feirão, nem na Gralheira, deve ter construído a sua geografia ficcional a partir de enciclopédias ou corografias como as de Pinho Leal que apontavam Gralheira-Aldeia e Gralheira-Serra como uma só. Mas, na verdade, a serra da Gralheira, situa-se a sul do maciço de Montemuro sobre São Pedro do Sul nada tendo a ver com a Gralheira em Montemuro. Para o romance não interessava esta geografia, mas o facto de se mencionar o topónimo em 1875 (data da primeira edição do romance), é significativo do interesse que o lugar, algures na Beira Alta, demonstrava entre os homens de letras cosmopolitas, como Eça.
O topónimo Gralheira é relativamente comum em Portugal reportando-se a sítios em Amarante, Vila Pouca de Aguiar, Alportel, São Pedro do Sul, etc. e, inclusive, como macrotopónimo que designa, como já referimos, uma serra a sul do Montemuro. Poderá derivar de gralha, aludindo a habitat para estas aves. Pinho Leal diz que Agralheira, nome que teria evoluído para Gralheira, «no Portuguez antigo significava – sitio desabrido, agro, aspero, infertil, etc.» [6]. Não encontramos, porém, em qualquer dicionário, tal sinónimo. O mesmo autor contradiz-se, afirmando, mais adiante: «Os d’aqui lhe chamam Grélheira, porque às gralhas chamam grelhas»[7]. O mais provável é, de facto, que o topónimo evoque a memória daquela fauna à semelhança de Açoreira, Avitoure, etc. De resto, se o sítio fosse tão árido e infértil, não teria assegurado uma ocupação humana tão longa no tempo.
Implantada num planalto na margem esquerda do ribeiro de Cabrum, junto à confluência de um pequeno afluente deste, os primeiros indivíduos a habitar a Gralheira devem ter sobrevivido à custa das hortas em redor da povoação e das pastagens que permitiam alimentar os gados. Pedra para construção dos seus edifícios encontravam-na os moradores em abundância nos afloramentos graníticos que, aliás, marcam a paisagem do lugar (ver o Penedo da Saúde); o colmo para revestir as habitações colhido nos lameiros e terras húmidas do vale do Cabrum. A madeira, talvez escassa, teria de ser procurada em zonas mais distantes. Porém, árvores de pequeno porte e arbustivas serviriam para o fogo do lar e para produzir carvão vegetal. No século XVIII o cura Manuel Rodrigues escrevia: «De centeio é a maior cultura, e trigo menos, e não se cultivam outros frutos nesta terra». Em 1981, nas actas do I Colóquio Ibérico de Geografia, escrevia-se o seguinte: «Na mais alta aldeia do Montemuro, a Gralheira, a pouco mais de 1.100 m., quase não há árvores de fruto e a produção de escassos litros de vinho por ano é apenas simbólica»[8] – panorama que deve ter-se verificado durante séculos.
Esta localização não impediu que na Gralheira persistisse uma comunidade humana, ininterruptamente, desde pelo menos o século XIII, período no qual existem as mais extensas notícias escritas sobre a povoação, embora tenha sido lugar aforado em 1144, por Cristina das Astúrias e seu marido[9] – ou seja, no século XII já aí existia uma comunidade. Este tipo de aforamento seria uma forma de potenciar a conquista de terreno montanhoso, levando-se ao seu arroteamento e cultivo o que resultava em rendimentos para o senhorio dos nobres e seus descentes.
Contudo, sabemos pouco sobre o longo tempo medieval da Gralheira.
As inquirições de D. Afonso III, datadas de 1258, dão-nos, contudo, algumas informações preciosas sobre o lugar, nomeadamente quanto às fronteiras do seu termo, balizado por acidentes naturais, como cursos de água e rochedos com especial notoriedade. O termo de uma aldeia compunha-se dos espaços urbano e rústico, e neste, de terrenos agrícolas, de pastagem e de mato. Embora a fonte não elucide sobre esta partição, o facto de possuirmos uma descrição tão detalhada dos limites poderá indicar a necessidade de uma regularização das fronteiras desta povoação, num quadro de ordenamento territorial em curso nos planaltos montemuranos ao longo dos séculos XII e XIII.
Em 1293, uma das abadessas do mosteiro de Arouca, D. Lucas Rodrigues, queixava-se dos homens de Ferreiros de Tendais que ateimavam em julgar indivíduos e bens que a sua comunidade religiosa detinha na Gralheira, em Campo Benfeito e em Roção[10]. Sítios apetecíveis, portanto, que no século XIII faziam mover o braço das religiosas para não largar mão dos proventos dali retirados.
No século XVI a Gralheira orçava pelos 10 fogos, isto é, cerca de 40 habitantes[11], mas não desertificou, como aconteceu com a relativamente próxima aldeia de Aveloso que, nas vésperas da atribuição do foral de Tendais, em 1513, estava despovoada[12]. E, em 1758, a Gralheira tinha 60 moradores, sinal do seu contínuo crescimento urbano. Entre 1864 e 1960 verifica-se um aumento populacional que começa a decrescer até 2011 (gráfico 1).
Na resposta ao inquérito de 1758, obtemos uma leitura sincrónica do lugar, quer na jurisdição civil, quer religiosa. Apesar de não muito desenvolvida, o cura da Gralheira que assina a memória, chamado Manuel Rodrigues, deixa algumas informações valiosas, sobretudo sobre a serra.
Gralheira pertencia, então, à província da Beira, ao bispado de Lamego, à comarca de Barcelos e ao concelho de Ferreiros de Tendais. Acrescenta o cura Manuel Rodrigues que estava sujeita à Casa de Bragança. Esta sujeição significava que, sobretudo, nos domínios militar e judicial, os Duques de Bragança possuíam as prerrogativas de nomear indivíduos, cobrar impostos e administrar justiça. Como o ducado de Bragança se estendia por várias regiões do país, a administração do seu território fazia-se através de manchas de propriedades e, no caso da justiça, ouvidorias ou comarcas. Ferreiros de Tendais e Tendais, um enclave da Casa de Bragança no Douro, estavam sujeitos à Comarca de Barcelos.
Quanto à geografia, o cura Manuel Rodrigues situava a Gralheira na serra de Montemuro (que dizia ter quatro léguas, a começar no Marão e a terminar em Alvarenga), junto a um ribeiro chamado Cabrum que nascia no sítio da Casa da Neve. Nas proximidades da povoação este ribeiro corria em planície e depois era de curso arrebatado, até desaguar no Douro.
Sobre o clima foi particularmente enfático: «Esta serra é demasiadamente frigidíssima, que no tempo de Inverno dois, três, e quatro meses se não vai a neve dela alguns anos se tem coalhado o vinho neste lugar da Gralheira não só nas cubas mas sim o que esta fora delas»[13].
E acrescenta, rematando sobre as qualidades da serra: «Há nesta Serra muita criação de gados, bois, vacas, carneiros, ovelhas e mais gados miúdos, e também lobos em quantidade. Muitas perdizes, lebres, e coelhos e alguns porcos bravos».
Em relação ao rio Cabrum diz que eram livres as suas águas, que moviam moinhos e nele havia pescaria, mas só no verão. Entre as pontes que o cruzavam, várias de pedra, uma delas situava-se na Gralheira.
A igreja matriz da Gralheira era um curato, do que resultava a designação de cura dada ao seu pároco. Um curato era uma espécie de igreja filial da igreja principal que, no caso da Gralheira, era a de Ferreiros de Tendais. Esta, com o título de abadia, tinha sob o seu domínio dois curatos: Bustelo da Laje e Gralheira.
Portanto, antes de existir uma igreja na Gralheira esta comunidade dependia da igreja de Ferreiros, onde acorriam os fregueses a sepultar-se e a baptizar os seus filhos. A distância a Ferreiros, por maus caminhos e por vezes intransitáveis levou à edificação de um templo e à criação da paróquia. Não sabemos quando se terá construído a primeira igreja da Gralheira (a actual é do século XVIII), mas é possível que tenha sido já nos finais da Idade Média ou início da época moderna – pois a orientação do templo é a canónica (fachada a ponte, cabeceira a nascente) característica dos templos medievais. Encontra-se implantada no centro da povoação, na intersecção de duas artérias principais nos sentidos norte-sul e oeste-este (imagem 2).
Na memória de 1758 indicam-se «três altares […] um na capela-mor aonde esta[va] a imagem da mesma Senhora [da Graça] e dous colaterais, um da Senhora do Rosário e outro de S. Sebastião». É possível que o cura de então descreva o interior do edifício actual, que em 1758 já tinha galilé, como se infere da nota sobre esta estrutura, num óbito desse ano[14]. Como curato, ou igreja anexa, cabia ao abade de Ferreiros de Tendais pagar ao cura da Gralheira, valor estimado em 1758 nos 40 mil réis. Outrossim o mesmo abade deveria assegurar certos bens para sustento do pároco e do culto. Num dos livros de registo paroquial encontramos referência aos usos da freguesia, nomeadamente a obrigação (do pároco de Ferreiros) de dar 40 alqueires de centeio e 2 de trigo e 5 arráteis de cera «velada», mais 4000 em dinheiro; 7 cargas de vinho, quatro cargas do Amial e de Matelos, Prelada, Pelisqueira e Trancoso e duas Covelas, uma de Ruivais e ½ do melhor que houver[15].
A capela do Senhor da Boa Morte (imagens 3-4) não é referida em 1758 pois ainda não existia. Veio a ser fundada trinta anos depois, em 1788. A escritura de fundação documento é, aliás, um dos mais interessantes documentos sobre o nascimento de um culto a Cristo Crucifixado, num período em que, na região, surgiam outros, similares, como o do Senhor do Amparo, no termo de Alhões. Situados à margem dos caminhos, em encruzilhadas, ou junto a penhas e lugares recônditos – sítios de perigo – serviam para que o viandante se sentisse confortado ou seguro.
Na escritura a que assistiram vinte homens da Gralheira, «por eles todos Juntos e cada um por si […] foi dito que no sítio dos Carvalhos, deste Lugar da Gralheira, Manoel Lopes “do Adro”, já falecido, mandar[a] por um Cruzeiro com a imagem do Senhor da Boa Morte nele estampado, [o] que tudo foi benzido. E, pelo grande fervor e devoção que eles ditos outorgantes tem no dito cruzeiro e imagem, nele estampada, de nosso Senhor Jesus Cristo, mandaram ao redor dele fazer uma capela para erecção da dita imagem do Senhor da Boa Morte, a qual se acha feita e completa de todo o reparo humano, fechada por uma chave […][16]. Este cruzeiro chamou a atenção de Bertino Daciano, que na sua monografia de Cinfães de 1954 deu conta das medidas da estrutura: cruz, 1m75cm e a imagem 80 cm[17] – a escultura de Cristo deve corresponder a um acrescento, substituindo a imagem estampada.
Do excerto da escritura ficamos a saber que um certo Manuel Lopes, morador junto ao adro da igreja da Gralheira, fizera erguer um cruzeiro, com a imagem estampada (isto é, desenhada e pintada) de Cristo e que, pelo fervor e devoção que ia crescendo no lugar, os moradores mandaram fazer uma capela para resguardar aquela imagem. Os mesmos moradores, representados pelos vinte homens, comprometeram-se a contribuir para a fábrica e reparo da capela e garantir o necessário à celebração da missa na capela. Dado que uma parte substancial dos registos paroquiais da Gralheira desapareceu (e deveriam existir ininterruptamente desde pelo menos o século XVII), esta lista nominal é importante para se compreender a sociedade local em finais do século XVIII. É possível que a lista dos assinantes da escritura não constitua a representatividade total dos chefes de família da Gralheira, pois eram, em 1758, 60 os fogos para 189 habitantes (ou seja, cerca de três pessoas por fogo). Representariam, talvez, uma elite da comunidade: os mais abastados, aqueles que poderiam assegurar a manutenção da capela e do seu culto. Ainda que a maioria dos intervenientes na escritura de 1788 saiba assinar, pelos apelidos comuns, alguns patronímicos, como Rodrigues, Luís, Francisco, Fernandes, depreendemos serem homens do povo. De facto, na aldeia e freguesia da Gralheira, ao contrário de outras, também serranas, não encontramos casas que se destaquem pela arquitectura, volumetria, implantação ou decoração e que evidenciem características de residência senhorial. Assim sendo, apesar de, nos registos de baptismo e de casamento encontrarmos sinais da importância de certos indivíduos, a comunidade seria formada maioritariamente por gente do povo.
Pelos livros paroquiais existentes sobretudo os mistos do século XVIII, ficamos a conhecer um pouco melhor a composição desta comunidade. Encontramos referências a sítios da povoação, como Outeiro, Fundo, Portela, Adro, Eira, Fonte e Carvalhos, a ofícios como a de sapateiro ou a do pastor António Fernandes que veio de Carragozela, em Várzea de Meruge (hoje Seia) casar à Gralheira – testemunho da transumância nesta região. Registaram-se alcunhas que evidenciavam outras proveniências, como Manuel Fernandes o Galego e deficiências físicas, como o Manco. Há também indicação de soldados e três interessante alusões a indivíduos da Gralheira falecidos em Montemor-o-Novo – sinal de uma migração cuja finalidade os registos nos não explicam. Os casamentos faziam-se dentro da povoação e com povoações próximas: Vale de Papas, Alhões, Gosende – sinal de reduzida mobilidade geográfica e social, embora apareçam assinalados alguns padrinhos com apelidos e cargos «sonantes», naturais de Lamego, São Cipriano, Anreade e Oliveira do Douro[18].
Nesta última freguesia, no arquivo da Casa do Revogato encontramos algumas pistas sobre uma das principais actividades dos gralheirenses: a pecuária. No inventário por morte de António da Cunha Pereira, do Lodeiro, datado de 4-6-1736, encontramos referência a indivíduos da Gralheira que tomavam a seu cargo gado do património do defunto: 1 vaca e 1 bezerro em casa de António Gaspar; 3 vacas e 3 crias em casa de António Dias. Também da Gralheira iam ao Lodeiro pedir empréstimos e no inventário havia registo que, na mão de um certo Lopes, soldado, da Gralheira estavam 16450 réis, na de Pedro Ribeiro 36760 réis e em posse de António Dias, 2230 réis[19].
Nos livros de Visitação da Gralheira, que existem para o período de 1788 a 1831, encontramos referências ao mau estado da igreja, à insuficiente côngrua do pároco e à necessidade de renovar o enxoval paroquial, através da compra de novos paramentos. Em 1806 o estado da igreja era dito «bem indecente» e, em 1829, ordenava-se a elevação da capela-mor à altura do corpo da igreja devendo abrir-se na parede uma fresta mais larga, rebocar e caiar por dentro e fora e telhado novo, soalhar o supedâneo do altar, «e neste mande colocar quatro castiçais de estanho de feitio e grandeza do pé da Cruz». O visitador ordenava, ainda, retelhar e caiar a sacristia e casa da residência e mandar fazer um armário para a cantareira da mesma sacristia que tivesse uma gaveta com fechadura «em que pudessem colher-se os paramentos e por cima um repartimento em se possa guardar os cálices, missais, e livros da Igreja, também com fechaduras»[20]. O Abade de Ferreiros, «dizimador principal desta Freguesia», pároco devia fazer estas obras, dentro de 6 meses.
A igreja actual, com torre sineira, diferirá bastante da igreja antiga, mais similar a uma capela, de capela-mor e nave com dimensões reduzidas – talvez com uma galilé de madeira ou pedra (não o sabemos) para acolher mais fiéis. Nas memórias de Carlos Oliveira Silvestre, colhem-se notícias interessantes sobre a transformação da igreja no século XX. Infelizmente, quer na matriz, quer na capela do Senhor da Boa Morte, os pretensos restauros têm destruído as técnicas e os saberes de construção antigos, substituindo-os por manifestações de duvidosa cor e douramento.
No século XIX a Gralheira aparece referida na literatura camiliana a propósito do período da Patuleia, mas já antes em alguns jornais se lê o topónimo, nomeadamente em 1837, quando um correspondente do jornal o Eco escreveu sobre as atrocidades de uma guerrilha miguelista que incendiara quatro casas na Gralheira – entre elas a do pároco[21]. Talvez se relacione com este período a figura de Manuel da Fonseca, sapateiro, da Gralheira, preso a 17 de março de 1831, pelo governo miguelista[22].
Na obra Maria da Fonte, de Camilo Castelo Branco, elogia-se a bravura dos homens da Gralheira e de outros serranos que lutaram ao lado dos miguelistas, durante a revolta popular da Patuleia (1846-1847). Embora longo, vale a pena transcrever o excerto:
[…] um tal Lobo com uns 40 homens da Gralheira e de outras aldeias vizinhas da serra de Montemuro. A gente do Lobo era pouca, mas valia por muita pela sua excessiva coragem e certeza dos seus tiros. Eram verdadeiros descendentes desses hermínios indomáveis que tanto deram que fazer às legiões romanas, e talvez descendentes do famoso Geraldo Geraldes e dos seus que eram desses sítios, e aí construíram o famosíssimo Castelo da Chã (veja o 3º vol. do Port. Antigo e Moderno, pág. 178, col. 2ª). Se se conseguisse formar um batalhão desta gente – o que não era fácil por serem de terras pouquíssimo populares – e discipliná-lo o que ainda seria mais difícil – era com toda a certeza um corpo temível; mas, se não tinha rigorosa disciplina a guerrilha do Lobo, eram bravos e fiéis, e nunca em toda a guerra praticaram o menor roubo ou malefício»[23].
O século XX começou com notícias de progresso para a Gralheira: o projecto ou, pelo menos, a proposta de construção de um Sanatório, num tempo em que os lugares de montanha eram procurados para a cura da tuberculose. Em 1908 o médico António Pereira Ramalho, natural de Porto Antigo, publicou a sua tese de sobre Climatologia Médica Portuguesa[24]. Nela publica fotografias do Penedo da Saúde, onde havia de construir-se o sanatório (e onde o médico levou a cabo as suas experiências), de uma interessante ponte pétrea e outras.
Neste século os etnógrafos, antropólogos e os arquitectos continuaram a interessar-se pela Gralheira, nomeadamente Fernando Galhano, que tinha origens em Cinfães. A partir da casa da sua família, nas Pias, fez várias excursões à serra e à Gralheira, como deixou registado, em tom memorialístico, nos seus escritos:
«Teria os meus 17 anos quando pela primeira vez fui à Gralheira. São perto de quatro léguas. Na primeira parte o caminho sobe, sem parar, a encosta íngreme que o esforço de muitas gerações transformou numa escadaria gigantesca de socalcos bordados de uveiras e bardos. Depois os campos entremeiam com tapadas de giestas, deixa-se de ver o vale do Douro, acaba a vide de enforcado, acaba o pinheiro, e entra-se por fim na zona mais plana, de subida suave. Depois um ribeirito, as primeiras lameiras, e por fim a Gralheira.
[…]
Vista dali a massa compacta de paredes de granito e de telhados de colmo era uma mancha que mal se distinguia da terra (só a igreja e a casa de um brasileiro eram então, e foram até há pouco, cobertas de telha). Por baixo dela, para onde escorrem as águas que lavam o estrume das ruelas, socalcos largos descem até aos soutos de carvalhos que escondem as lameiras. E para cima, para além dos campos mais fraquitos e secos, o Monte, já há muito dividido, com uma ou outra sorte murada e tapadas de giestas, sobe até ao Talegre, o ponto mais alto da serra, com os seus 1280 metros»[25].
Também Vergílio Pereira, etnomusicólogo, encontrou na Gralheira, formas musicais únicas, os cramóis – deturpação de clamores canções a várias vozes que têm a sua origem em litanias ou ladainhas. Ali, em Setembro de 1948, assistiu a uma audição das senhoras gralheirenses Maria da Conceição Oliveira, Maria dos Anjos, Lídia de Oliveira e Elvira de Oliveira[26]. Publicou as suas recolhas no livro «Cancioneiro de Cinfães» que nos anos seguintes tanto estimulou o folclorismo local. Desta passagem restou, também, uma fotografia, publicada na monografia de Cinfães, de 1954 (imagem 5).
O Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal, realizado entre 1951 e 1965, com as suas equipas de arquitectos e fotógrafos, passou pela Gralheira, deixando registos das habitações praticamente inalteradas desde tempo de Rocha Peixoto. É o mais completo registo fotográfico da vida na Gralheira, com captações de interiores e exteriores, homens, mulheres e crianças. Há imagens de alegria (imagem 6), mas a pobreza é gritante (imagem 7) – pobreza que se tornou motivo pitoresco até aos dias de hoje, através do folclore e do artesanato.
Em meio século, apesar da completa transformação da Europa por duas Guerras Mundiais, a introdução da electricidade e de novos meios de comunicação entre continentes, as mulheres e os homens da Gralheira não deixavam de colmar as suas casas, criar o seu gado e viver praticamente isolados do resto do mundo.
O telefone chegou em 1961, a luz eléctrica só chegou em 1964. Em 1969, uma estrada uniu a Gralheira ao Roção, no concelho de Castro Daires, mesmo antes de assegurar uma ligação directa à sede de concelho, Cinfães[27].
Com a Revolução de 1974, novos ventos de mudança pareciam trazer o progresso ansiado. Pelo menos é o que se infere do extraordinário documento que distingue, também, a Gralheira de outras localidades. Visitada por duas equipas de dinamização do MFA, a história da Gralheira liga-se à da libertação da longa noite salazarista que, no seu caso, incluiu a abertura ao Mundo, através de um estradão providenciado por recursos conseguidos pelos militares. Ligava a Gralheira à E.N. 321, próximo à Carvalhosa.
A propósito da visita à Gralheira com o MFA, o escritor António Modesto Navarro, autor do livro «Vida ou Morte no Distrito de Viseu», escreveu: «quem defende a conservação da “pureza da miséria portuguesa” devia ser condenado a viver na serra de Montemuro»[28].
De facto, o que o escritor e os militares encontraram na Gralheira de 18975 foi a miséria que ao longo do século XX tinha sido considerada pitoresca e «pura» pelo intelectuais. A entrevista (que já analisámos aqui) ao presidente da junta de freguesia de então, José Pereira da Fonseca e a um jovem local chamado Orlando Ribeiro Lopes, constitui um elemento de extraordinária importância para o resumo de séculos de isolamento.
No seu bairrismo, a Gralheira tem divulgado as suas tradições e alguns dos naturais mais destacados nas letras, como o Sr. Carlos Oliveira Silvestre, autor de várias monografias memorialistas (imagem 8) e no desporto, o Armando Fonseca Costa, campeão Boccia – Medalha de Ouro nos jogos Olímpicos de Atlanta.
Mas uma comunidade não se faz apenas dos presentes, da realidade dos dias, ou da visibilidade da paisagem, exaustivamente elogiada e que reflecte, apenas os olhos de quem a vê. A título de curiosidade, da Gralheira saiu, no século XVII, Maria Dias, cuja descendência em Boassas e no Lodeiro, deu origem a uma das maiores escritoras portuguesas, no tempo do Romantismo.
Mas isso é outra história.
Nuno Resende
NOTAS
[1] Diário da República, 1.ª Série, n.º 19, Lei n.º 11-A/2013 de 28 de janeiro (Reorganização administrativa do território das freguesias). Acedido a 2 de fevereiro de 2013.
[2] GIRÃO, Amorim – Montemuro: a mais desconhecida serra de Portugal. Coimbra: Coimbra Editora, Lda., 1940.
[3] FERNANDES, Rui; BARROS, Amândio – Descrição do terreno ao redor de Lamego duas léguas [1531-1532]. 2.ª edição. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2012. ISBN: 978-989-658-188-6.
[4] BARROS GOMES – « Observations forestieres durant une excursion à travers la Beira, faite en auto 1876». Jornal de sciencias mathematicas, physicas, e naturaes, Tomo V, 1876, pp. 228-230.
[5] ROCHA PEIXOTO – Formas da vida communalista. In JÚDICE, António Teixeira, Notas sobre Portugal, Lisboa: Imprensa Nacional, 1908.
[6] LEAL, AUGUSTO SOARES DE AZEVEDO BARBOSA DE PINHO – Portugal Antigo e Moderno […]. Lisboa: Livraria Editora de Mattos Moreira & Companhia, 1874, p. 316.
[7] Idem, ibid.
[8] Apud BUSTOS, Eugénio, ed. – I Colóquio Ibérico de Geografia. Salamanca: Universidad de Salamanca, 1981, p. 91.
[9] [S.A.] – «Montemuro». In – Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Lisboa: 1963. Vol. 17: |Cap. Chapter. p. 749-751.
[10] ANTT, Ordem de Cister, Mosteiro de Santa Maria de Arouca, gav. 6, mç. 5, n.º 21
[11] COLLAÇO, João Tello de Magalhães – Cadastro da População do Reino (1527). Lisboa: [edição do autor], 1931.
[12] MARQUES, Maria Alegria; RESENDE, Nuno – Terras e gentes: os forais manuelinos do actual concelho de Cinfães. [s.l.]: Câmara Municipal de Cinfães, 2013. ISBN: 978-989-98362-0-4.
[13] ANTT, Memórias paroquiais, vol. 17, nº 100, p. 557 a 558
[14] ADML, paroquiais, Gralheira, mistos, 1742–1775, cx. 1 n.º 16, fl. 146.
[15] ADML, paroquiais, Gralheira, mistos, 1742–1775, cx. 1 n.º 16, fl. 46.
[16] ADL, notariais, Cinfães,
[17] GUIMARÃES, Bertino – Cinfães. Porto: Junta de Província do Douro Litoral, 1954, p. 88.
[18] ADML, paroquiais, Gralheira
[19] AHCR, Ms. 048, Inventário de António da Cunha Pereira, fls. 9 v e 12 v.
[20] AMDL, Visitações, Livro de Visitações da Gralheira,
[21] [S.a.] – «Lamego 6 do corrente». O ecco: jornal crítico, litterario e político 1838, Março, 20, p. 4.133.
[22] VELOSO, Pedro da Fonseca Serrão – Collecção de listas que contem os nomes das pessoas, que ficarão pronunciadas nas devassas, e summarios. Porto: Typ. de Viúva Ribeiro Alves & Filho, 1833, p. 94. O padre perseguido poderá ser Manuel Lopes da Cerveira, que paroquiava a freguesia nesta altura.
[23] CASTELO BRANCO, Camilo – Maria da Fonte: a proposito dos Apontamentos para a historia da revolução do Minho em 1846, publicados recentemente pelo reverendo padre Casimiro, celebrado chefe da insurreição popular. Porto: E. da Costa Santos, 1885, p. 201.
[24] RAMALHO, António Pereira – Pequeno Subsídio para o estudo da climatologia medica portugueza. Região da Gralheira (serra de Montemuro). Porto: [Typ. a vapoor da «Encyclopedia Portugueza», 1908.
[25] GALHANO, Fernando – «Evocação». In BAPTISTA, Fernando Oliveira, coord.., BRITO, Joaquim Pais de, coord.., BRAGA, Maria Luísa, coord. & PEREIRA, Benjamim, Coord. – Estudos em homenagem a Ernesto Veiga de Oliveira. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1989. p. 187-197. ISBN: 972-667-101-X.
[26] PEREIRA, Vergílio – Cancioneiro de Cinfães. Porto: Junta de Província do Douro Litoral 1950, p. 90.
[27] MONTEREY, Guido de (pseud.) – Terras ao léu: Cinfães. [Porto]: Edição de autor, 1985, p. 385 ss.
[28] NAVARRO, António Modesto – Vida ou morte no distrito de Viseu. Lisboa: Prelo, 1976, p. 277.
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Ex.º: RESENDE, Nuno – «Giraldo Geraldes, o sem pavor». História de Cinfães, https://historiadecinfaes.pt/, consultado em linha em 17-10-2009.
Professor. Universidade do Porto. Portugal.