“A MAIS DESCONHECIDA SERRA DE PORTUGAL”, de Amorim Girão (1940)[1].
O livro “Montemuro: A Mais Desconhecida Serra de Portugal” de Aristides de Amorim Girão (1895-1960), publicado em 1940, é uma obra monográfica sobre aquela serra, localizada a sul do rio Douro, em Portugal, delimitada a sul pelo Paiva e a nascente pelos planaltos da Nave. A obra inscreve-se num contexto da evolução da disciplina da Geografia, especialmente no início do século XX, quando esta começava a consolidar-se como uma ciência interdisciplinar, procurando conciliar o olhar entre os elementos físicos do território e a sua humanização. O autor, professor da Universidade de Coimbra, contribuiu significativamente para a Geografia de Portugal[2] sobretudo através da obra com o mesmo título, editada entre 1949 e 1951.
Anos antes, porém, de lançar este trabalho de fundo, Aristides de Amorim Girão interessou-se pela serra de Montemuro devido a uma combinação de fatores pessoais e académicos que o mesmo explica. Desde jovem, Girão sentia uma atração especial pelo Montemuro, que ele via desenhar-se no horizonte visível da sua aldeia natal, Fataunços (Vouzela). Essa visão despertou nele um desejo de explorar e estudar a região.
Durante seus estudos da Bacia do Vouga[3], Girão teve a oportunidade de examinar de perto o maciço montanhoso da Gralheira, o que aumentou seu interesse pela serra de Montemuro. Finalmente a influência de amigos e colegas, espoletada por uma breve estadia em Castro Daire e por artigos publicados pelo Cônego Inocêncio Galvão (natural de Alvarenga, Arouca), sobre pesquisas arqueológicas na serra. Girão escreveu ao Cónego Galvão, expressando seu interesse em examinar os restos arqueológicos mencionados nos artigos.
Apesar de uma grave crise de saúde que o obrigou a adiar seus planos, Girão continuou a acalentar o projeto de estudar a serra de Montemuro. Propôs à Universidade de Coimbra a necessidade desse estudo, e, com o apoio de um aluno, chamado João Augusto Pinto de Almeida, natural de uma aldeia de Montemuro, conseguiu finalmente realizar uma série de excursões e notas sobre a serra.
Pelas indicações que nos dá o autor, este teria estado na serra de Montemuro entre 1932 e 1939, embora não saibamos as datas específicas, os percursos que efectuou, nem os tempos de estadia. Das 28 fotografias publicadas no livro, 14 são do autor e dizem respeito à Gralheira e às suas proximidades. É possível que Amorim Girão tenha feito, apenas, breves incursões à serra, socorrendo-se das fotografias, relatos e informações de outros, como bem refere na sua introdução e nos créditos às ilustrações.
Antes de passarmos à obra, importa dissertar sobre o título: “Montemuro. A mais desconhecida serra de Portugal”. É certo que, até 1940, as serras da Estrela e do Gerês levavam a palma no interesse primeiro dos exploradores e cientistas portugueses. A Estrela foi alvo de várias excursões entre finais do século XIX e a primeira metade do século XX[4]. Contudo, nos sistemas montanhosos de Portugal, o Marão, o Alvão, o Larouco, etc. constituíam territórios em alguns sítios inalcançáveis e com comunidades absolutamente isoladas, distantes dezenas e centenas de léguas da cidade mais próxima.
Por outro lado, o que Amorim Girão designará por maciço de Montemuro, incluía no seu âmago uma cidade antiga, Lamego, sede de um bispado desde o século VI que chegara a estender os seus limites até Espanha. O mesmo autor reconhece a importância de Castro Daire como vila de afluência e de passagem, na Beira Alta.
A justificação de Amorim Girão sobre o inusitado título assentou em cinco premissas:
- No acesso difícil, devido ao relevo acidentado e à falta de boas vias de comunicação.
- Pouca exploração científica: As referências a Montemuro eram apenas incidentais, feitas por alguns homens de ciência e literatos, mas não havia estudos detalhados e sistemáticos sobre a região.
- Falta de estudos: Girão menciona que, apesar de algumas breves estadias e excursões realizadas por ele e outros, não havia um estudo abrangente e detalhado da serra.
- Isolamento Geográfico: a serra de Montemuro estava afastada das principais linhas de circulação e das grandes cidades, o que contribuiu para seu desconhecimento.
- Referências Limitadas: as poucas referências existentes sobre Montemuro eram, segundo Girão, feitas por figuras como Barros Gomes, António Ramalho, Eça de Queiroz, Abel Botelho e Aquilino Ribeiro, mas essas menções não eram suficientes para proporcionar um conhecimento profundo da serra.
Na verdade, os pontos 2 e 5 não correspondiam à realidade. Sobejamente conhecida deste a época moderna, o Montemuro aparece amiúde referido em obras corográficas, na memorialística barroca e nas geografias que vão surgindo ao longo do século XIX. Se é certo que, durante muito tempo, o triângulo formado pelas montanhas que compõem o maciço de Montemuro, aparece na cartografia portuguesa como uma área vazia de vias de comunicação, também é certo que este território não era, de modo algum, desprovido de canais de trânsito, desde logo os da transumância que o autor destaca.
Amorim Girão só ao de leve refere autores e obras, na maioria literárias que, aqui e ali, aludiam a aldeias, espaços ou indivíduos do Montemuro. Mas, tivesse feito uma leitura das memórias paroquiais de 1758, já bem conhecidas no seu tempo (sobretudo pela arqueologia), poderia ter adquirido uma ideia menos isolacionista e conservadora do maciço montemurano. O bispado de Lamego, através da sua organização temporal dava particular interesse a esta região, que incluía na divisão eclesiástica do Douro. Vários mosteiros tinham aqui propriedades que exigiam formas céleres de administração e acesso.
A ideia de uma serra desconhecida, a “mais desconhecida”, aliás, é, pois, a visão de um intelectual que, de Coimbra, observa ao longe a silhueta montanhosa que lhe parece misteriosa e, talvez, o mais importante o facto de destacar-se isolada no sistema montanhoso ibérico, como a única e verdadeiramente portuguesa. E, em 1940, à luz do novo Estado Novo isso importava. Assim o sublinha Amorim Girão:
“Se exceptuarmos a serra da Estrêla, com os seus 1993 metros de altitude, nenhuma outra formação montanhosa do nosso país tem a importância do Montemuro, não só a Sul, mas mesmo ao Norte do rio Douro. A sua altitude máxima é de 1382 metros. Há ao Norte do Douro, algumas serras que ultrapassam esta cota: Gerez (1561 m.), Peneda (1415 m.) e Marão (1415 m.). Porém, a primeira destas não é só portuguesa e, nas duas restantes, a curva de nível de 1200 metros encerra extensões reduzidas. [sublinhado nosso]”[5]
O livro é dividido em quatro partes:
- Geografia Física: Esta seção aborda a localização da Serra de Montemuro no contexto do relevo geral de Portugal, sua constituição geológica, principais linhas de relevo e formas de erosão, orogenia, hidrografia, clima e vegetação. O autor detalha a complexidade orográfica da serra e suas implicações para o clima e vegetação.
- Geografia Humana: Aqui, Girão explora a população primitiva, o desenvolvimento histórico da população, a distribuição atual dos núcleos de povoamento, materiais e formas de habitação, a fisionomia das povoações serranas, a paisagem religiosa e o clima político e moral. Esta parte destaca a relação íntima entre o meio físico e a ocupação humana, bem como as tradições e costumes locais.
- Geografia Económica: Nesta seção, o autor discute a cultura do solo, a criação de gados e as indústrias caseiras. Ele enfatiza a autossuficiência das populações locais e a importância das atividades econômicas tradicionais, como a agricultura, a pecuária e as pequenas indústrias artesanais.
- Castro Daire, centro de atracção do Montemuro: A última parte foca na vila de Castro Daire, sua situação geográfica, origens e desenvolvimento, e sua função regional. Girão descreve Castro Daire como um centro de confluência de vias terrestres, destacando a sua importância histórica e económica, nomeadamente como ponto de passagem para os gados transumantes da serra da Estrela.
Estes pontos mostram-nos o quanto Amorim concebia a geografia como campo interdisciplinar. Olhando a Geografia como uma abordagem integrada entre Homem e Natureza, Girão foca aspectos da História, da Antropologia e da Arqueologia, para desenhar um panorama o mais completo do território, não apenas no Presente em que escreve, mas como reflexo de Passados próximos ou longínquos.
Embora por vezes sejamos levamos a pensar de forma determinista para o que escreve Amorim Girão quando aponta soluções intrinsecamente ligadas aos recursos naturais e características geomorfológicas da montanha, que manietam os indivíduos e as suas comunidades, o seu pensamento parece desenvolver-se sobretudo em torno do possibilismo, isto é, da capacidade do Homem em transformar o meio. Assim se revela, por exemplo, na forma como aponta da autossuficiência das populações locais, baseada na agricultura, pecuária e indústrias caseiras e a capacidade de adaptação de comunidades desde o século XII. Quanto a este aspecto Amorim Girão não logrou reconhecer comunidades que se extinguiram ou despovoaram, como Aveloso ou Marcelim de Jusão[6], aludindo, apenas ao caso do Bugalhão, que considerou excêntrico.
Da obra destacamos os aspectos mais importantes focados:
- Relevo, Geologia e Clima: A forma como Amorim Girão apresenta e analisa (através de cartografia, desenhos técnico e fotografias) a complexidade orográfica da Serra de Montemuro e sua influência no clima e na distribuição da vegetação, assim como o papel da climatologia nesta diferenciação
- Povoamento e demografia: A dispersão das comunidades e a tipologia de povoamento consoante as condições geomorfológicas.
- Aspectos antropológicos e etnológicos: Apontando formas de construção, produção e utilização de recursos naturais A preservação das tradições culturais e religiosas, bem como a resistência às inovações externas.
- Interdisciplinaridade: A obra almeja uma abordagem interdisciplinar da Geografia, integrando aspectos físicos, históricos e antropológicos.
- Detalhe: A obra é rica em detalhes, com descrições minuciosas das características físicas e humanas de certas comunidades da Serra de Montemuro, privilegiando, as regiões voltadas a sul (Paiva) e nascente.
Por outro lado, devemos salientamos os aspectos mais empíricos, apriorísticos e superficiais, em parte justificados pelo pensamento político e ideológico em voga ao tempo do autor:
- “Tradição” de Resistência: A tradição de resistência à inovação e um latente conservadorismo perpassam ao longo de todo o livro. Amiúde descrita como como uma zona montanhosa pouco acessível, onde o habitat aglomerado favorece o isolamento e torna a região pouco permeável às ideias novas, o autor apresenta população com um espírito conservador e tradicionalista, que se manifesta em apoio à monarquia e ao miguelismo – sobre cujo período faz algumas considerações. A resistência à ocupação estrangeira é, segundo Girão, simbolizada pela fortificação das Portas do Montemuro, que teria dado nome à serra e que testemunharia a organização e solidariedade das “tribos lusitanas”. Este posicionamento do autor inviabiliza desde logo outras propostas, como o facto de estarmos perante os vestígios de uma fortaleza romana ou, ou como recentemente proposto[7], uma fortaleza não cristã, enquadrada no tempo da Reconquista.
- Zona de Refúgio e Passagem: Para Amorim Girão desde tempos imemoriais, a serra constituiu uma importante zona de refúgio e passagem. A fortificação proto-histórica conhecida como “Muro” seria um exemplo significativo dessa função defensiva. Mas a afirmação é paradoxal. O posicionamento da fortaleza, nas Portas, “abertura” visual na paisagem e ponto privilegiado de visualização do território a Norte e Sul do Douro, contradizem a ideia de um território fechado, assim, como as vias naturais de penetração, no sentido Norte Sul, como os vales de ambos os Bestanças (em Cinfães e em Resende), ou a ribeira de Aregos. Também o antigo canal de trânsito entre Viseu e Lamego, por Castro Daire, que Amorim Girão aponta como estrada romana, parece contradizer a inacessibilidade do maciço.
- O colectivismo ou comunitarismo, que Girão explora, por exemplo, através de exemplos como o gado da vigia, ou o arrendamento de terrenos para o gado da transumância, inscreve-se numa corrente regionalista e nacionalista que estimulava a ideia de Identidade Local através de práticas comunais ou colectivas. O autor também menciona o forte bairrismo das populações serranas, que tinham um grande apego à sua terra e às suas tradições, esquecendo as vicissitudes inerentes à falta de recursos, à sobre-exploração da terra e à subsequente emigração. Segundo Amorim Girão este sentimento de identidade local contribuiria para a resistência às influências externas e para a preservação dos costumes e modos de vida tradicionais – programa querido da propaganda estado-novista que, em 1940, replicava o modus vivendi destas comunidades serranas na Exposição do Mundo Português, em Lisboa. A. Girão chama-lhe Clima Político e Moral, destacando a relação entre o relevo do solo e o clima mental, sugerindo que a geografia da região contribui para a formação de um ambiente político conservador. A serra do Montemuro seria como um reduto de tradições antigas e de resistência às mudanças políticas e sociais.
- Apesar do tom antropológico do discurso de Amorim Girão as fotografias publicadas em “Montemuro: a mais desconhecida serra de Portugal” são pouco humanistas. Focam-se, naturalmente, na paisagem, em elementos geomorfológicos e nas qualidades de determinadas estruturas e edificado, deixando pouca margem para indivíduos e as suas condições socioeconómicas. Estas só seriam verdadeiramente captadas uma década depois, quando os autores o trabalho Arquitectura Popular em Portugal [8]por aqui passaram. A Gralheira é, dentre todas as aldeias montemuranas, uma das mais fotografada, sobretudo os seus habitantes, o que nos mostra uma continuidade das más condições de vida, insalubridade das habitações e formas de exploração da terra que exigiam árduo trabalho. No tempo de Amorim Girão estas questões eram tratadas como formas primitivas e até pitorescas de organização da terra e do trabalho.

Em suma, embora “Montemuro: A mais desconhecida serra de Portugal”, constitua uma obra pioneira à época, pela observação integrada de um território de montanha e pelo seu carácter multidisciplinar, o enfoque do autor na antropologia e até numa certa psicologia colectiva, fundamentada no isolacionismo geográfico e mental que justificaria o conservadorismo das comunidades, deve obrigar a uma leitura contemporânea atenta e crítica.
Por um lado, Girão aborda o Montemuro integrando elementos de Geografia Física, Humana, Económica e Cultural, promovendo uma visão integrada e holística do território e das suas comunidades. Essa é a sua modernidade, em 1940.
Por outro, o trabalho de Amorim Girão está impregnado pelo pensamento político do Estado Novo, refletindo a exaltação do regionalismo, da identidade nacional e do conservadorismo. Essa abordagem molda tanto os seus argumentos quanto a interpretação da relação entre Homem e Natureza no Montemuro.
Ao destacar a Serra de Montemuro como “a mais desconhecida” de Portugal, Girão insere este território no mapa científico, cultural e político, contribuindo para o conhecimento e valorização de um espaço negligenciado. Contudo, essa designação revela mais a visão pessoal do autor e o contexto ideológico da época do que a realidade histórica e científica do território.
Mas, apesar da riqueza descritiva e da tentativa de interdisciplinaridade, a obra apresenta limitações. A visão de isolamento e resistência do Montemuro, bem como a ausência de análise mais crítica das condições socioeconómicas das populações, revela um viés conservador e apriorístico.
O que podemos reter da modernidade do seu trabalho, é que a obra de Girão enfatiza a necessidade de revisitar o Montemuro à luz de novas abordagens e métodos, superando o determinismo e explorando de forma mais crítica e abrangente as dinâmicas entre espaço, cultura e economia.
E se, em 1940, Montemuro não era, de modo algum, a “mais desconhecida serra de Portugal”, as exigências da contemporaneidade, sobretudo ao nível da exploração de recursos naturais e energéticos, deixam-na à mercê do epíteto, talvez, “da mais explorada serra de Portugal”.
NOTAS:
[1] GIRÃO, A. Amorim- Montemuro: a mais desconhecida serra de Portugal. Coimbra: Coimbra Editora, Lda., 1940.
[2] Idem- Geografia de Portugal. Porto: Portucalense Editora, 1949-1951.
[3] Idem – Bacia do Vouga: estudo geográfico. Coimbra : Imprensa da Universidade, 1922
[4] Por exemplo a «Expedição scientifica à Serra da Estrela em 1881», cf. FERREIRA, Luiz Feliciano Marrecas. Expedição scientifica à Serra da Estrela em 188. Lisboa: Imp. Nacional, 1883.
[5] Girão, op. cit., 1940, p. 25.
[6] Veja-se MARQUES, Maria Alegria; RESENDE, Nuno – Terras e gentes: os forais manuelinos do actual concelho de Cinfães. [s.l.]: Câmara Municipal de Cinfães, 2013. ISBN: 978-989-98362-0-4.
[7] ROCHA, Arnaldo – «A muralha das Portas: algumas considerações para uma leitura diferente». Terras de Serpa Pinto. 2 (1992), p. 31-44; e RESENDE, Nuno – Fervor & Devoção: Património, culto e espiritualidade nas ermidas de Montemuro (séculos XVI a XVIII). Porto: Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2012, 2 vols..
[8] [AA.VV.] – Arquitectura popular em Portugal. Lisboa: Sindicato Nacional dos Arquitectos, 1961.

Professor. Universidade do Porto. Portugal.