Proximidades: a “alagoa” de D. João.

Esta montagem fotográfica foi feita em 1996 quando, durante a preparação de um projecto turístico literário para o Montemuro, passei pela Alagoa de D. João. A magnífica depressão, alagadiça e coberta por um manto de várias espécies erváceas e arbustivas, localizada não muito distante da Gralheira e da Panchorra, foi mencionada a voo de pássaro por Eça de Queirós no romance O Crime do Padre Amaro e, com maior rigor, por Abel Botelho no seu conto A Fritada. Em breve aquela magnífica paisagem perderá o aspecto pacífico e selvagem, com a construção de um novo parque eólico. Para memória futura, aqui ficam a fotografias e as palavras de Abel Botelho, a avisar que um dia precisaremos mais da natureza do que hoje da energia que à força lhe retiramos:

“Avançavam cautelosamente per um terreno alagadiço e molle, coberto de herva rasteira e miudinha, e ondes fartas poças de lôdo armavam não raro aos viajantes descuidosos traiçoeiras armadilhas. Era o dorso da Gralheira. Para a esquerda, grande agglomerações caprichosas de urgueiras, verdes e arbustivas, em bellas formações conicas, vegetavam por entre as penhas escalvadas, n’essa promiscuidade gelada dos mausoleus e dos cyprestes n’um vasto cemiterio. Á direita, o terreno deprimia-se gradualmente em desniveis sucessivos, tapetados com abundancia de urzes, de fetos rusticos e de urgueiras, cujo verde, de tons suavemente graduados, marcava nitidamente a espaços a flôr avelludada, amarella ou branca, do sargaço; depois continuava-se n’uma estirada sequencia de valles e corcovas até junto á bacia estreita do Douro, de cujos aprumados contraforeste se avistavam as cristas magestosas, e para além da qual se alteava ainda, azulada e indecisa, a serra do Marão. Na frente, a recortarem-se firmes no azul embaciado de agosto, com uma tinta luminosa e fresca de aguarella, montões gigantes de calhaus pardos de granito, assumindo os mais phantasticos perfis: castellos feudaes arruinados, com torres esborôadas, fossos, barbacans; novellos enormes e redondos, pacientemente dobrados polos seculos; anachoretas esguios, orando curvos e de joelhos, o livro à frente, poisado sobre uma caveira. Ainda na frente, a grande distancia, com o contorno suavisado pola espessura da atmosphera interposta, uma pyramide geodesica de 1.ª ordem, liliputiana, ridicula, mal segura, assentava no craneo angulos d’um cabeço.”

BOTELHO, Abel – Mulheres da Beira (contos). Lisboa: Empreza Litteraria Lisbonense, 1898, 147-148.

About the author

Nuno Resende, Historiador
Nasceu na vila de Cinfães em 1978

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